top of page
Buscar
  • Foto do escritorVinícius de Oliveira.

Recaída no consumo de filosofia. Um ensaio de hiper-vulgarização filosófica do pensamento de Max Scheler

Atualizado: 2 de mai.


Max Scheler, em 1912 (1874-1928)



Não há muito tempo, prometi a mim mesmo que evitaria ao máximo ler qualquer coisa que me viesse com o rótulo de “filosofia”, fosse ela acadêmica, ou não. Minha dieta de leituras passaria a ser composta preferencialmente de literatura de ficção ou ensaio, história, direito público, temas técnicos do direito constitucional e eleitoral (porque me pagam o pão), e biografias. Assim, andei enfiando a cara em autores de que gosto porque simplesmente gosto como Michel Houelebecq e Carlos Heitor Cony no terreno da ficção, e Henri Kissinger no campo do ensaísmo histórico, biográfico e político (mais especificamente, política internacional).


Alguns acontecimentos, todavia, me desviaram de meu propósito. Por exemplo, comprei um bestseller de divulgação científica no campo da psicologia social e experimental. Me refiro à obra Mente Moralista: Por que pessoas boas são segregadas por política e religião do celebrado (2013), de Jonathan Haidt. Ao mesmo tempo, me empenhando em me manter só um pouquinho atualizado com o que gente mais ou menos da minha geração com pretensão de ser reconhecido como intelectual escreve: abri emails em que algumas dessas pessoas continuam a escrever audaciosos ensaios sobre o mal-estar da modernidade ou sobre o papel da experiência brasileira no todo da cultura ocidental desde que Cabral pôs os pés aqui. Foram estas malditas leitura que me levaram de volta à filosofia, à recaída no consumo de filosofia.


Jonatham Haidt me deu vontade de ler antropologia filosófica. Isso porque a disciplina dele, psicologia social, ao tentar explicar como surge a moral, a noção do certo e do errado, inexoravelmente, se volta para os instintos naturais do homem ou para convenções sociais imensamente variáveis e surgidas mais ou menos de modo aleatório nas sociedades humanas para dar ordem à convivência entre os homens. E me surgem as velhas questões: e mas o negócio de Deus? E as tretas sobre o espírito? Sobre religião? Isso está ligado, de certa forma, aos escritos audaciosos sobre o mal-estar na modernidade, sobre “o que perdemos desde o humanismo renascentista” e por aí vai. É sempre fácil explicar as hecatombes do século XX ao modo Plínio Correia de Oliveira: desde a Revolução Francesa a Igreja Católica vive sob forte ataque, foi afastada do guiamento moral e jurídico dos povos, e agora nos restou o caos ou a iminência constante do caos, enquanto o que mantém o mundo com dignidade em pé, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e seus corolários, não é mais que a secularização do Sermão da Montanha e de outros textos da tradição judaico-cristã. Explicações mais complexas vão ser encontradas nos cultores da obra “naufragada” de Eric Voegelin e similares. Mas eu não quis ir por aí e indagar sobre o que restou de Deus na literatura alternativa reacionária que faz a cabeça dos mais intelectualizados “conservadores” brasileiros e norte-americanos. Fui ao que se debate na academia, dominada por “progressistas”, entre os filósofos acadêmicos do mainstream. Fui especificamente à tradição continental, não à anglo-saxã analítica. Me recordei de Hans Blumenberg que meu orientador do Mestrado nos instou a ler numa disciplina optativa de Tópicos de Filosofia. Blumenberg foi um homem que combateu a ideia de modernidade como secularização do teológico pré-moderno. Fez isso com a obra A Legitimidade da Idade Moderna, em 1960, contestando a obra de Karl Löwit, defensor da Ideia de que a Idade Moderna não tem nenhuma grande originalidade em relação ao Medievo. Eu entendo mais ou menos o que é isso, a secularização do teológico, ou ideias correlatas como a de “imanentização do eschaton”, de Voegelin, mas não tenho jeito para explicar. Para simplificar eu exemplificaria com a ideia de Auguste Comte de trocar o culto aos santos católicos por um culto à grandes figuras da humanidade ligadas às artes e às ciências, como Leonardo da Vinci. Mas conte com sua “religião da humanidade” é só a manifestação mais caricata, mais histriônica do fenômeno da secularização do teológico denunciada por Karl Löwit.



Hans Blumenberg (1920-1996)


Mas eu não me lembrei de Blumenberg tanto pela polêmica que ele teve com Löwit que é tida como uma das polêmicas centrais da História da Filosofia na Alemanha do século XX. Eu me lembrei de Hans Blumenberg porque ele também tinha uma antropologia filosófica — e eu queria ir à antropologia porque eu queria saber se o homem é só um animal com uma rede neuronal mais complexa, que está aí, no fim das contas, só para lutar pela sobrevivência desde sua posição na evolução das espécies. Blumenberg deve muito de sua antropologia a outro filósofo muito renomado em terras teutônicas, Arnold Gehlen. São alemães que só discutem com alemães, todos eles, em geral. De vez em quando vão lá ao período clássico trocar alguma ideia com Aristóteles, Parmênides ou Platão, mas não costumam se misturar com maus elementos pós-modernos franceses, com perigosos suicidas como Louis Althusser, ou com sadomasoquistas como Foucault. Pois bem, Gelhen é o sujeito que concebia o homem como um ser carente de instintos e fraquíssimo na capacidade de se adaptar ao meio ambiente para sobreviver. Por isso ele teria desenvolvido o que eu vou traduzir aqui como “capacidades cognitivas”, e por aí vai. Frágil diante das feras da natureza e dos micróbios, recolhido com pavor nas cavernas, o homem pré-histórico, o verdadeiro Adão, foi obrigado a inventar o fogo para se aquecer e cozinhar uma comida que não lhe desse dor de barriga; a inventar armas primitivas pontiagudas na falta de chifres e dentes para se defender dos animais; a desenhar nas cavernas para explicar os perigos que ameaçavam sua família e por aí vai. Depois veio Yuval Harari, digo, veio aquilo que Yuval Harari disse que veio: a “revolução agrícola”, a “revolução cognitiva” (quando o homem aprendeu a inventar contos da carochinha sob o nome de mitos e religiões para arrebanhar e manter pessoas unidas multidões em torno de um propósito comum, como um Silas Malafaia juntando gente em Copacabana para destronar um Ministro do STF) e a “revolução científica”. Mas voltemos à Gelhen. Ele também teria dito que o homem é indeterminado por natureza, ou seja, não dispõe de softwares e aplicativos biológicos que o permitam comportar-se conforme um padrão pré-estabelecido, como os rinocerontes e os lagartos. O homem simplesmente não sabe o que está fazendo aqui no Planeta Terra, na Natureza, no Cosmos, e o que tem que fazer com essa existência. Então ele inventa o que tem que fazer, podendo inventar qualquer coisa, e essa qualquer coisa é qualquer coisa que não tinha necessidade absoluta de ser inventada. Essa concepção do homem é comum a Heidegger e ao Jim Morrison de Riders on The Storm (“neste mundo fomos jogados como um ator sem papel”). O que parece necessário no homem de Gelhen é apenas que esse homem invente alguma coisa, que invente principalmente “instituições”, ou seja, regras que ponham ordem no convívio humano. Por algum motivo obscuro, Gehlen achou que no momento caótico em que seu país vivia durante República de Weimar, no entreguerras, esse papel de impor as ordens e as instituições cabiam ao maníaco Adolf Hitler.



Arnold Gahlen (1904-1976)


Mas não parei em Gehlen (aliás não li Gehlen ainda, não tive tempo, mas li o que dizem de Gelhen em artigos chancelados pela academia). De Gelhen fui a um de seus antecessores nos estudos antropológico-filosóficos. Fui à Max Scheler e em Max Scheler (cujos livros Sobre o Eterno no Homem, 1920, e A posição do Homem no Cosmos, 1928, estou providenciando para ler) também há uma antropologia. Todavia, em Sheller o homem tem espírito e o espírito se manifesta no homem quando o homem vai contra os impulsos de seus instintos naturais, e esse espírito é alimentado por um poder superior e transcendente que se revela a ele de forma individualizada, um Deus enfim. Espírito e Deus não estão presentes no sistema de Gehlen.


(como eu posso ser capaz de vulgarizar tanto o pensamento filosófico!?Pareço Pablo Marçal explicando Blumenberg, Gehlen, Heidegger, Scheler. )


Mas vamos em frente, o tom vai ser assim mesmo, leve e bem-humorado, oswaldiano até, se é que não estou vulgarizando também o estilo de Oswald de Andrade (acho que sim). Voltemos a Max Scheler.


Uma filósofa acadêmica nos conta que seu amado Hans Gadamer (outro alemão que veio bem depois de Scheler) ficava estarrecido com o fato de que os alunos alemães de seu tempo não sabiam quem fora Max Scheler. Como? Até eu com uns 17 anos de idade já tinha lido, com temor reverencial, sobre a existência de Max Scheler. Creio que seu nome me apareceu pela primeira vez nos escritos introdutórios ao Direito de Miguel Reale. Esses estudantes de filosofia alemães, ao desconhecerem Scheler, não tinham a dignidade de se colocar muito acima do nível do Alemão do Big Brother 7, aquele mesmo que tem um vídeo viralizado recentemente no twitterX em que está sentado numa poltrona, apenas com uma sunga vermelha, fumando de óculos, enquanto põe a mão saco e grita para uma participante: “vem cá, chupa minha rola!”. Provavelmente, os dois ou três leitores que chegarem até aqui também não saberão quem foi Scheler. Mas não faz mal. Vou contar quem foi.


Nosso filósofo nasceu em 1874, em Munique, de uma família judia. Sua formação já mostrava em germe o quanto irrequieta era sua sede de saber, e sua capacidade de receber múltiplas influências. Enquanto se convertia ao catolicismo, interessava-se apaixonadamente por Nietzsche (coisa curiosa que no Brasil sempre foi comum entre nossos escritores admirados por conservadores como Otávio de Faria e Mario Vieira de Mello) e se considerava um marxista reformista, um social-democrata. Em 1895 foi estudar Medicina em Berlim, mas não seguiu a carreira de Hipócrates. Moveu-se logo para os estudos de filosofia e sociologia sob a orientação de eminentes professores (personagens de enciclopédias de filosofia) William Dilthey e Georg Simmel, respectivamente. De Berlim pariu para Jena e tornou-se estudante de um dos mais populares filósofos de seu tempo, Rudolph Eucken, prêmio Nobel de Literatura de 1908, hoje esquecido em toda parte do Cosmos, mais esquecido que o terceiro eliminado do Big Brother 7 (só é lembrável o Alemão naquela temporada). O destino de Eucken, cuja entrada na Wikipedia só tem 2 míseros parágrafos, me despertou uma certa tristeza: como um homem tão famoso em seu tempo pode ter desaparecido tão completamente da consciência cultural do ocidente? Me deixa triste, mas não surpreso: é o que acontece com a imensa maioria. Nessa seleção natural um tanto aleatória dos pensadores que se terão fama longeva e quiçá “imortal” só uma meia dúzia dentre dezenas de milhares chegará às batatas da longa posteridade. Mas há um mínimo que se pode fazer para não ser esquecido. Travar relacionamento com a gente mais famosa que for surgindo ao longo dos anos, fazer um network, “construir relacionamento” na high society dos pensadores ocidentais, de seus editores, de seus jornalistas especializados, de artistas e escritores bajuladores. Scheler fez isso, por isso é relativamente bem lembrado. Vejamos a lista: em 1898 conheceu Max Weber, um dos três gigantes clássicos da sociologia, e, enquanto se tornava Privatdozent em Jena, tornou-se próximo do pai da fenomenologia, Edmund Husserl, talvez a sua maior influência, até porque a prestigiada Stanford Enciclopedia of Philosophy (online) em que me baseio para escrever essa mini-biografia, o coloca entre os primeiros e mais criativos desenvolvedores da escola filosófica do velhíssimo Husserl. Privatdozent não é professor privado, não é alguém como Mário Ferreira dos Santos ou Olavo de Carvalho que davam cursos livres, sem nenhuma ligação com a universidade. Privatdozent correspondia ao que aqui hoje em nossas universidades chamamos de livre-docente (alguém que tem licença para ensinar na universidade, porém sem vínculo estável, sem compor o quadro de associados e titulares). Scheler tinha apenas 22 anos então. Por esta época, ainda, travou relações também com o canônico filósofo francês Henri Berson.


Em 1910, aos 36, Scheler caiu em desgraça na universidade: bom homme à femmes que era, foi acusado de seduzir alunas, e, com o agravante de seu recente divórcio da primeira esposa, foi afastado da universidade, por, digamos, falta de “decoro parlamentar”. Tornou-se aí sim professor privado, assim como são professores privados corajosos rapazes que dão cursos de filosofia captando alunos no Youtube hoje em dia. Além de professor privado, Sheler se fez escritor freelancer.


O Youtube do tempo de Scheler eram salas de hotéis alugadas por alunos. Fez do limão uma limonada: ampliou seu network travando relações com mais pensadores importantes do seu tempo como Edith Stein. Ao mesmo tempo foi prolífico em publicações. Em 1918, aos 44, foi resgatado para uma universidade em Colônia pelo futuro presidente da Alemanha pós-nazista Konrad Adenauer. É em Cologna que Scheler escreve um de seus trabalhos mais importantes, Sobre o Eterno no Homem, em 1920, obra inspirada pelos horrores da segunda guerra mundial. Nela o nosso filósofo não se empenha apenas num trabalho especulativo, mas num esforço engajado de resgate da religiosidade na Alemanhã como solução para a profunda crise econômica, social e espiritual em que o país havia chafurdado. Nesse período em Colônia, ele continua a se comunicar e confabular com gente da alta, como o físico Albert Einstein e os escritores Paul Valéry, Romain Rolland, e Rainer Maria Rilke. Nos anos 20, avançando pelos 50 anos, Scheler prossegue infatigável em seu trabalho filosófico. Antes de morrer num hospital de Frankfurt em 1928, publica A Posição do Homem no Cosmos, mais uma obra magna de antropologia filosófica que marcaria os rumos da disciplina nos anos posteriores. Tinha 54 anos e não era dado a cuidados com a saúde: fumava entre 40 e 60 cigarros por dia. Estava em seu terceiro casamento e se afastara da igreja católica enquanto se aproximava dos temíveis (para a direita cultural) Max Horkheimer e Theodor Adorno, ícones da chamada Escola de Frankfurt.



Martin Heidegger (1879-1976)


Saindo do biográfico e adentrando, ainda que de modo tímido e perfunctório no pensamento antropológico-filosófico de Sheler (ainda faço na vida na vida um estudo sério estendido e não vulgarizado de Scheler), quero terminar esse ensaio com ligeiras notas coletada no verbete sobre Scheler da Stanford Enciclopedia of Philosophy. São notas que espero sirvam como convite a conhecer mais Scheler como eu próprio quero conhecer entre a elaboração de um relatório burocrático ou outro no trabalho:

1. O filósofo propunha que a vida afetiva precede a vida cognitiva e que o nosso universo de conhecimento é circunscrito e limita-se ao que nossos sentimentos de amor e ódio amam ou odeiam. A sua epistemologia portanto é condicionada pelos afetos. Numa bela metáfora, ele compara o universo de conhecimentos de um homem a uma ilha criada no mar do ser e a causa eficiente dessa ilha é o amor.


2 — O fenômeno do ato religioso é um ato de revelação. A cosmovisão moderna se pergunta, com razão, se esse ato religioso de contato direto e individual com Deus não é apenas algo imaginário ou unicamente subjetiva. Scheler responde que a experiência religiosa é uma dádiva que não pode ser provada racionalmente, mas é conhecimento objetivo particular.


3- O homem inexoravelmente é um buscador de Deus. O ateísmo não é um ato cognitivo que nega a Deus, mas um ato de vontade que o rejeita.


4- A diversidade das religiões ou a “variedade das experiências religiosas” (expressão de William James), é explicada pela metáfora de um rio. Todas as religiões provêm de uma mesma e única fonte, e de um único e mesmo rio, mas esse rio se bifurca, se subdivide em múltiplos canais como num delta; cada braço de rio, cada igarapé, é uma religião particular.


5- O século XX é o momento histórico em 10 mil anos de História em que o homem se tornou o maior problema filosófico para ele mesmo e de um modo mais agudo.

6- A natureza humana é indeterminada, é um “vir-a-ser”, o homem é um ser “auto-transcendente”.


7- O homem participa ao mesmo tempo do movimento da vida (biológico, interpreto eu) e do movimento do espírito. Scheler volta à algo próximo da dualidade atribuída a Descartes entre mente e corpo. O que explica a existência de um movimento do espírito é uma ação de Deus.


Tentando interpretar Scheler e sua relação com Heidegger há que ambos compartilha a ideia de indeterminação do homem, ou da abertura ao mundo. Ambos encaram a condição humana como a condição de seres “jogados no mundo” (coloquei aspas mas não é se trata de uma citação de Heidegger, é, pelo menos, o que se diz comumente que Heidegger disse). Em outros termos, tal como para Heidegger, para Scheler também fomos jogados no mundo, como náufragos em uma ilha, sem mapa, sem curso de desenvolvimento pessoal, sem cartilha do bom viver, sem uma Ética a Nicômaco, sem um Pequeno Tratado das Grandes Virtudes como o escrito por André Comte-Sponville. Cabe a nós nos virarmos. Talvez seja uma concepção radical do livre-arbítrio.

Mas há uma diferença fundamental entre os entendimentos de Heidegger e de Scheler sobre esse ser jogado no mundo. Para o primeiro, fomos jogados ex nihilo. Viemos do nada. Scheler, talvez por concordar que do nada nada vem, por sua vez, acredita que fomos jogados no mundo por Deus. Depois de jogados somos absolutamente livres para inventar múltiplos jogos de instituições sociais e motivações para agir, porém me parece implícito em Scheler que ansiamos por retornar à fonte de onde veio nosso espírito e que isso influencia nossas criações e nosso agir.


Mas há uma diferença fundamental entre os entendimentos de Heidegger e de Scheler sobre esse ser jogado no mundo. Para o primeiro, fomos jogados ex nihilo. Viemos do nada. Scheler, talvez por concordar que do nada nada vem, por sua vez, acredita que fomos jogados no mundo por Deus. Depois de jogados somos absolutamente livres para inventar múltiplos jogos de instituições sociais e motivações para agir, porém me parece implícito em Scheler que ansiamos por retornar à fonte de onde veio nosso espírito e que isso influencia nossas criações e nosso agir.


POST SCRIPTUM (02/05/2024)




Andei lendo verbetes no Dicionário de Filosofia de Abbagnano nessa minha recente recaída filosófica. Há um excelente verbete sobre a alma. Não me causou prazer a leitura. Quando mergulho no mundo dos conceitos puros sinto um tanto de fastio que resvala à tristeza, pior, sinto como se adoecesse um pouco, como diz Fernando Pessoa naquele conhecido poema: “a metafísica é consequência de estar indisposto” ou algo semelhante. Filosofia é para ser lida com muita moderação. Há que voltar à vida, não se deter muito tempo no universo das abstrações.


Mas há filosofias e filosofias. Por exemplo, estou apreciando muito o Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, de André Comte-Sponville, ateu humanista dedicado ao que a catalogação tradicional chamaria de Ética, ao que Kant chamaria de Moral Prática. A primeira coisa que chama a atenção na prosa filosófica de Sponville é a clareza. Seu estilo é como a água cristalina da beira de um lago muito limpo: nos permite ver o fundo do lago, os peixes que nadam por ali, as plantas aquáticas submersas. O bom estilo serve como a água cristalina: mostra-nos o objeto com luz, cor, movimento, e nitidez; não se interpõe como água turva entre a nossa visão e aquilo que queremos o escritor nos mostre, as “coisas mesmas” (sei que, tecnicamente, em filosofia, as coisas mesmas não são as coisas mesmas, são algo que não entendo bem). Do conteúdo do “pequeno tratado”, escrito para o “grande público”, e portanto acessível aos leigos na tecnologia conceitual filosófica, me chamam atenção duas assertivas, uma contida no primeiro ensaio, dedicado à Polidez, outra no último ensaio, dedicado ao Amor:


(1) A polidez (a boa educação, os bons modos) é o início da virtude, um embrião da virtude, ou a sua imitação apenas, um treino, necessária ao convívio social, mas insuficiente para a prática autêntica de qualquer virtude;


(2) A Moral existe, necessariamente, porque o Amor é escasso, porque não amamos o tempo todo e a tudo e todos, porque embora o amor seja a mais elevada das virtudes, a chave de abóbada do pequeno sistema das virtudes de Sponville, ele também é a mais sovina e escassa das virtudes.  Sponville mostra erudição, mas como um facilitador do entendimento dos clássicos, torna Aristóteles, Platão, Kant, Spinoza, Hegel, pessoas concretas com quem poderíamos dialogar. Destaco por fim, o que seria para ele o equivalente do “imperativo categórico” kantiano: “age como se amasses”. Muito mais simples e humano que o “age como se a máxima da sua ação se devesse tornar, pela sua vontade, lei universal da natureza.” Aliás o que Kant queria dizer era só a máxima do senso comum em termos de moral: “não faça nada que cause danos aos outros”, porque o contrário, generalizado, seria a guerra de todos contra todos. Mas filósofos alemães, digo os da turma de Kant, Hegel, Heidegger, não os da turma de Nietzsche, Goethe e Loewenstein, não sabem escrever, não sabem explicar as coisas como bom filósofo francês, um Montaigne, um Pascal, um Sponville, ou como o italiano Bobbio.

“Age como se amasses.”

4 visualizações0 comentário
bottom of page