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  • Foto do escritorVinícius de Oliveira.

Pessach: A Travessia, o romance do Golpe de 1964




Se um romance merece ser lembrado como o romance dos primeiros anos do Golpe Militar de 1964 esse romance é Pessach: A Travessia, de Carlos Heitor Cony (1926–2018). Saiu em 1967 pela editora Civilização Brasileira, entre o golpe e o AI-5, e captura como poucos o zeitgeist daquele momento histórico no país. No meio de toda a enxurrada de publicações que têm saído estes dias sobre os 60 anos do golpe ninguém se lembrou de Cony e de seu grande romance político. Escrevo esse breve ensaio para cobrir essa lacuna.

Artigo acadêmico já classificou a obra como romance de formação (bildungsroman), mas acho que o romance de formação de verdade que Cony trouxe à lume fora Informação ao Crucificado, de 1961. Evidentemente autobiográfico, esse romance anterior, curtíssimo, traz um seminarista (Cony fora seminarista católico) às vésperas de ser ordenado padre, já filósofo, estudioso, talentosíssimo, desistindo da carreira eclesiástica. Embora lá pelo meio do romance a visão de uma moça nua, filha do caseiro do seminário, cause alguma ebulição nos fluidos internos do jovem seminaristas, não é o voto de castidade que leva o personagem à apostasia. Ele estava ali porque achava o treinamento (e que treinamento! Aulas de Latim, Grego, Química, Biologia, Teologia, Filosofia, práticas monásticas, e algum recreio na serra de Teresópolis para jogar futebol) para o sacerdócio algo belo e difícil, mas objeções de consciência não permitiam que ele continuasse. Que objeções? A objeção ao dogma da existência do mal e de um personagem que o encarne em toda plenitude: satanás. O jovem João Falcão que, não tenho dúvidas, é inspirado no próprio Cony, não se nega a acreditar em Deus, nega-se a acreditar no diabo. Outros dogmas de “crença obrigatória” também são motivos de sua descrença e, por um ato de dignidade intelectual e moral, o rapaz deserda. Não quer ser um sacerdote hipócrita. João Falcão era aluno de primeira linha, teria ascendido no clero. Talvez pudesse se tornar bispo, cardeal, e, porque não, depois do Papa argentino, o Papa brasileiro. Mas não foi, na minha opinião ele se tornou um escritor profissional como o Paulo Simões de Pessach: A Travessia.

Só não posso confabular que João Falcão se tornou Paulo Simões porque este era judeu étnico por parte de pai, sem qualquer prática religiosa. Pessoalmente nunca teve religião. Nem qualquer crença filosófica ou política a que se apegasse. O próprio pai de Simões era só um judeu assimilado e só na velhice, sofrendo de paranoia persecutória de nazistas se arrepende de não ter sido um judeu praticante. Paulo Simões é o típico personagem dos romances existencialistas, e o existencialismo literária é uma influência nunca negada por Cony. Já no início do romance sabemos que ele vive sozinho, divorciou há pouco de Laura e tem uma filha, Ana Maria, matriculada em um colégio de freiras, onde faz - como fazia o seminarista - João Falcão, leituras nada pias, Henry Miller incluso, além dos romances do pai, que as freiras acham um horror de indecência. Hoje governadores supostamente conservadores pensariam o mesmo dos romances de Cony e procurariam proibir a leitura de livros de tragédia familiar rodrigueana como O Ventre (1958) ou como o desbragadamente indecente, erótico, ultrajante, e ainda assim inocente, Pilatos (1973).

Nos primeiros capítulos, os personagens centrais vão surgindo um a um fazendo visitas a Simões ou sendo visitados por ele. Antes de Simões ver a filha Ana Maria no colégio de freiras, e a ex-mulher Laura que, após o divórcio, teve a infelicidade de se casar com um halterofilista alcoólatra que a trata como uma Maria da Penha, o protagonista vê Teresa, mulher casada de quem é amante. Pela descrição das relações do protagonista até aqui sabemos que estamos falando de um pequeno-burguês típico carioca de seu tempo. Filha em colégio religioso, amantes, divórcio, coisas comezinhas da tradicional família carioca um pouquinho à frente de seu tempo. Somos apresentados também aos pais de Simões: o velho judeu assimilado que, de tão paranoico, guarda comprimidos de cianureto para se matar no caso de a perseguição nazista voltar, a mãe cansada, triste e dolorida que teme que algumas de suas dores abdominais sejam sinais de câncer. Mas o encontro fundamental do primeiro capítulo do romance é com Sílvio e Vera, dois militantes de uma célula de terroristas seriamente comprometidos com a derrubada do regime militar.

Simões tivera um ridículo treinamento militar no início da vida adulta e era reservista. Sílvio estava a recrutar justamente reservistas para servirem de guerrilheiros na causa revolucionária comunista. Vera está ali para garantir que as ultrassecretas conspirações dos “subversivos” não vazem. Simões diz que assina manifestos contra a ditadura, mas que não vai entrar numa aventura que ele considera risível e fadada ao fracasso. Sílvio insiste e para convencê-lo cita uma passagem de um dos livros de Simões em que ele afirma o seguinte:

“A única certeza que possuo é esta: a da minha morte. Não sei se acabo de dar o laço da gravata, não sei se chego ao fim deste dia, não sei se amanhã estou na cama com a rainha da Inglaterra ou se tomo conta dos cachorros do dalai-lama. Só de uma coisa sei: vou morrer. Aceito a morte, seria burrice fugir dela, ou não assimilá-la. Se é a minha única certeza, tenho de preparar-me para ela, ou, se possível, de prepara-la para mim. Não quero morrer de velhice ou de moléstia. Os samurais japoneses consideravam a morte natural, a morte por moléstia, como uma nódoa infame, abominável. Tampouco terei motivos para o suicídio. Mas não suportarei a morte na cama, a próstata inflamada, urinas presas ou soltas, sondas, algodões embebidos em éter, escarros, a repugnante liturgia da morte. Não vou esperar pelo câncer do reto ou do piloro, nem o insulto cerebral. Antes que a vida me insulte, eu insultarei a vida: me engajo numa luta — não há cruzadas para defender o túmulo do Salvador, é pena — e a ela me entrego com ferocidade. Talvez consiga ser herói.”

O dia em que Simões recebe Sílvio e Vera, depois de ver Teresa, e antes de ver, nessa ordem, a filha, a ex-esposa, os pais, o editor (o célebre Ênio Silveira ficcionalizado) e os colegas escritores profissionais, não é um dia comum, é o dia do seu aniversário de 40 anos. Essa circunstância é crucial no romance pois liga Paulo Simões ao seus ancestrais judeus, mais especificamente livro do Êxodo, e ao patriarca Moisés. São várias quarentenas: os 40 anos de Simões, os 40 anos de escravidão do povo judeu no Egito, a travessia de 40 anos no deserto rumo à liberdade. A simbologia é muito clara: Simões é chamado para fazer a sua própria travessia no deserto. Deixar a náusea um tanto fingida do existencialista que não crê em nada mas não deixa de aproveitar os pequenos prazeres da vida (um café da manhã completo servido pela amante, um bom vinho num restaurante à noite) e de cumprir seus compromissos familiares e profissionais básicos com um sentido de cumprimento de dever de um “homem de bem” comum. Enfim, Paulo Simões é um cidadão comum até demais e até “inofensivo”, nas palavras de Vera. E é porque está demasiado ocupado com seu cotidiano de homem ordinário que ele se recusa a ser herói. Mas essa recusa dura apenas as 24 horas do dia de seu aniversário, que cobre toda a primeira parte do livro. No dia seguinte, já está ele pegando estrada com Vera para fora do Rio de Janeiro, ajudando-a em uma fuga, rumo a Resende, em direção ao valhacouto dos guerrilheiros. Em pouco tempo, conhecerá o sinistro Macedo, um dos líderes guerrilheiros na zona rural.

Simões começa a travessia. Ele não quer morrer de velhice, de moléstia ou de suicídio. Em breve saberá que os pais que estavam morrendo de moléstias, da decrepitude fatal da vida, acabam por morrer de suicídio. Isso reforçará sua decisão radical de aderir, de se engajar numa luta, no “combate nas trevas” como bem definiu o historiador comunista brasileiro Jacob Gorender a luta armada brasileira.

Naqueles primeiros anos da ditadura que ainda não são propriamente anos de chumbo, são os anos da “ditadura envergonhada”, há várias formas de engajamento. Para uma delas Simões recebe convite na editora de seu editor: escrever direta ou indiretamente contra a ditadura e a favor de uma revolução social no país. Transformar o universo cultural brasileiro, mudar a cultura de um povo, fazer o que Antonio Gramisci queria que fosse feito: mudar as mentalidades para depois mudar as estruturas políticas e sociais. Poetas, romancistas, antropólogos e historiadores com quem Simões se encontra na editora pouco antes de partir com Vera estão entusiasmadíssimos com o engajamento literário na transformação social do país. Mas Paulo não opta por esse tipo de engajamento. Cínico, prefere escrever um conto sardônico sobre a relação de um bidê e a vagina de uma mulher. O protagonista prefere ser o alienadão decadentista, quer ser o que ele é de fato até a partida com Vera. O outro engajamento possível da época é o engajamento no Partido. Digo o velho Partido Comunista, de Luís Carlos Prestes e Astrogildo Pereira, mas esse é um engajamento em uma “burocracia estéril”, segundo a crítica de um guerrilheiro de que fala Macedo. Segundo Jacob Gorender, às vésperas do golpe de 1964, o Partido Comunista Brasileiro é um partido de apoio ao Governo Jango. A grande estratégia do partidão é apoiar o desenvolvimento do capitalismo nacional primeiro para só depois fazer a revolução socialista. A “revolução brasileira” para nossos comunistas do velho partido é uma revolução em duas etapas e mais lenta que a tartaruga da social democracia. E Macedo com seus companheiros de luta não querem isso: não querem esperar. Macedo está em algum grupo como a Aliança Nacional Libertadora de Marighela, criada após o golpe com metas declaradamente terroristas como tática. A ALN coloca em prática com muito sucesso principalmente em assaltos à banco, o que Francisco Julião com suas Ligas Camponesas já preparando, sem muito sucesso, desde 1962, com treinamento militar na zona rural, bem como o que dissidências do PCB prometiam em seus manifestos. Jacob Gorender, ao contrário do que se tem dito sobre o Golpe Militar nos jornais esse ano acredita sim que vivíamos um momento pré-revolucionário ímpar para a esquerda socialista e que o golpe perpetrado por militares - e civis como o Corvo Lacerda, Governador da Guanabara, e o careca Magalhães Pinto, Governador de Minas Gerais — fora um contragolpe.

Na angústia de sua espera, Macedo entrega-se à perversões sexuais. Fora torturado pela polícia, tivera o pênis e o saco escrotal queimados com maçarico. Num dos episódios mais marcantes do romance, Paulo Simões o surpreende à noite em um quarto da “casa-grande” de uma velha fazenda chicoteando um homem preto (Cony escreve “crioulo”, não conte aos canceladores supostamente antirracistas de hoje, querido leitor) enquanto esse possui Vera. É a tara do homem. Macedo é um dos dois grandes personagens sem pênis de Cony, o outro é o protagonista de Pilatos. Vemos aí que o tema da castração é algo recorrente na literatura de Cony. A orgia sadomasoquista-racista termina em vias de fato porque Simões decide acabar com ela na porrada e quem leva a pior é o homem negro que termina assassinado por Macedo.

A descrição da luta entusiasma, o romance nessa parte já se tornou uma espécie de thriller de perseguição policial, numa atmosfera pré-apocalíptica, e assim prossegue até o fim numa fronteira austral do país. Já não conseguimos parar de virar as páginas e seguir adiante com a narrativa. Simões decidiu-se: não iria morrer de velhice ou moléstia, nem de suicídio, mas no combate. Se era um bom ou mal combate pouco importava, ele não era um cristão como Paulo de Tarso, era um judeu.

***

Li esse romance de Cony nos meus anos universitários, talvez em 2001, numa edição de 1997, pouco depois do retorno ao romance de Cony, com grande êxito comercial e de crítica, através de Quase Memória (da vida do pai de Cony), uma das obras de ficção mais aclamadas dos anos 1990, vencedora dos prêmios de melhor romance e melhor livro de 1996. Pessach (palavra que quer dizer passar por cima) me foi sugerido por uma edição em papel jornal do Globo na onda do sucesso de Quase Memória (1996). Foi um dos romances que mais me impressionaram na vida e até hoje exerce fascínio sobre a minha imaginação, aguçando o sentimento de tensão entre a neutralidade de um ceticismo político sensato e o ímpeto de um engajamento passional e pouco refletido. Digo pouco refletido porque refletir muito dificulta qualquer engajamento sério. Você vai refletindo e acaba morrendo de velhice como o próprio Cony. Ao menos pode deixar uma obra literária vigorosa. Tudo depende de sua escolha existencial.

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