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  • Foto do escritorVinícius de Oliveira.

Como ganhar prêmios literários sem vender a alma - Ou a Política da Literatura



Num dos capítulos da primeira parte de Pessach: A Travessia (1966), de Carlos Heitor Cony, o protagonista escritor vai à editora que publica seus livros. Temos ali um momento de autoironia e metalinguagem disfarçada. O editor quer que o personagem escreva literatura um conto fácil sobre a virgindade feminina porque precisa vender e assunto de sexualidade feminina sempre vende muito. Por outro lado, reclama que ouve sempre a reclamação sobre a alienação, a falta de comprometimento político e de engajamento do seu autor. Paulo Simões, o protagonista, devia se engajar na política editorial da empresa:


“ — (…) Precisamos é de costurar todos os descontentamentos existentes, e, com essa colcha de retalhos, compor a mortalha da ditadura que aí está. Dar tiro não resolve [Simões havia contado que recebera um convite para entrar numa guerrilha comunista]. Nem cuspir na cara do marechal”.


Escrever prosa e poesia engajada de esquerda é o que todos estão fazendo lá na editora com a finalidade mais imediata de “compor a mortalha da ditadura que está aí”. Poetas, ficcionistas, sociólogos, antropólogos, economistas. O tempo é de engajamento, e a literatura existencialista, alienada, preocupada com o mal-estar do existir de Simões já está fora de moda. Assuntos que não sejam políticos, e de esquerda, não estão na política editorial da empresa, a não ser erotismo voltado para o público feminino.

A literatura de Cony é, como ele já confessou em entrevistas, é muito auto-ficcional, então ali sabemos em que evento a cena do romance foi inspirada: em algum encontro de Cony com o editor Ênio Silveira, da Civilização Brasileira. A autoironia e a metalinguagem desse capítulo está no fato de que Pessach: a Travessia é um romance aparentemente político que, certamente, fora escrito sob a pressão por engajamento daqueles tempos. Mas, no fundo, continua sendo um romance, digamos assim, existencial: o protagonista se engaja e acaba caindo em uma aventura armada, num “combate nas trevas” porque que como lhe revelou incomodamente o primeiro homem que o convidou para a guerrilha, Simões, apesar de sua pose de estoico que não vê sentido algum em se engajar em crenças e causas ideológicas ou religiosas, não quer morrer de moléstia ou de velhice, e, na recusa de suicidar-se para não viver a moléstia ou a velhice, prefere uma morte violenta numa luta qualquer.


O romance de Cony traz uma boa sugestão para os escritores de nosso tempo descontentes com a política editorial política das editora de nosso tempo. Me explico: ninguém vai ganhar prêmio literário, nem vai publicar em grande editora caso não:


(1) Escreva sobre racismo, principalmente o racismo regionalizado, após o sucesso de Tordo Arado (2018). Mas não basta escrever sobre racismo, tem que tem um certo engajamento contra o “racismo estrutural”;


(2) Escreva para o empoderamento feminino.


(3) Escreva contra o fascismo no nosso tempo ou no passado.


Embora os romances “realistas” que mais vendam sejam os que atiçam o interesse feminino por sexualidade, muitas vezes por uma sexualidade, digamos, heterodoxa, com uma violenciazinha consentida (tudo o que vai na onda de Cinquenta Tons de Cinza, ou com o comércio do corpo (penso no fenômeno Tudo é Rio, de Carla Madeira), a literatura séria que vai ter grande investimento em publicidade, distribuição, etc., é a literatura dita “progressista” que abrace alguma causa “emancipatória”, se possível envolvendo “interseccionalidades”. Também os prêmios só serão dados a literatura desse teor

(Sobre isso convido o leitor a pesquisar as sinopses dos livros premiados pela Amazon, no concurso Prêmio Kindle — um bom prêmio, que paga 50.000 reais ao primeiro colocado — dos últimos anos. Vá lá e vê se não tenho razão. Compro dez romances não engajados para quem me provar que estou errado).


Sou dos que pensam que quando a definição de uma orientação política obrigatória para a política literária das grandes editoras e dos grandes prêmios empobrece a literatura.


Assim também pensava um escritor político inglês, George Orwell, num ensaio de 1940, intitulado Dentro da Baleia. É um dos melhores ensaios de crítica literária da primeira década do século XX. Orwell, admirador de Henry Miller, um autor pornográfico e obsceno bastante por ser admirado quase unanimemente pela nata da intelectualidade conservadora, começa falando do sucesso extemporâneo de Trópico de Capricórnio (1936). Argumenta Orwell que o livro de estreia de Henri Miller devia ter sido lançado na década de 1920 quando a literatura mais aplaudida e vendida era uma literatura desengajada, experimentalista, existencial, religiosa, filosófica. Lembremos que os grandes colossos literários da década de 1920 eram obras nada engajadas politicamente: Ulisses (1922) de James Joyce e da maior parte da série de romances Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust. Ainda sobre os anos 1920, Orwell ressalta que não é verdade que a literatura da década do pós-Primeira Guerra tenha sido inteiramente a-política. Só não era engajada, não tinha credo ideológico, porque o que havia de melhor dela, a prosa e a poesia de jovens sobreviventes da Primeira Guerra, eram grandes lamentações sobre o desencanto com as ideologias, com os nacionalismos, com as causas políticas que produziram os horrores até então inéditos na história humana das batalhas do Somme, de Verdun, de Ypres.


Os anos 1920 também foram os anos das vanguardas pretensamente disruptivas, do futurismo fascista ao radicalismo dadaísta. Era também um tempo de literatura espiritualizada em que sobressaíam autores católicos como Yeats e Elliot. Há uma virada na década de 1930. Sobretudo após a ascensão de Hitler e do advento da Guerra Civil Espanhola. Escrevendo em 1940, Orwell acha que o fenômeno da politização da literatura é até muito novo em 200 anos de literatura:


Durante os últimos dez anos a literatura tem se envolvido cada vez mais profundamente na política, com o resultado de que agora há menos espaço para o homem comum do que em qualquer momento durante os últimos dois séculos (…) O mais significativo, no entanto, é o fato de quase todos eles, de direita ou de esquerda, serem escritos sob um ângulo político, por partidários presunçosos que dizem o que pensam, enquanto os livros sobre a Grande Guerra foram escritos por soldados comuns ou oficiais subalternos que nem mesmo fingiam entender do que se tratava. Livros como Nada de Novo no Front, Le Feu, Adeus às Armas, Death of a Hero, a Good-Bye to All That, Memória de um Oficial de Infantaria e A Subaltern on the Somme foram escritos não por propagandistas, mas por vítimas.”


Três expressões me chamam a atenção neste trecho: “ângulo político” “partidários presunçosos”, e “propagandistas”. Não há nada de errado em um romance ter como material de trabalho a política ou a história. O problema é o ângulo adotado. O ângulo não pode ser o do militante porque a visão de todo militante é estreita e a verdadeira literatura observa tudo a partir de um ângulo mais abrangente. Além disso há um quê de maniqueísmo em todo militante enquanto a literatura autêntica tem sempre um nível mínimo de ambiguidade moral encarnada em todos os seus personagens. Um escritor, portanto, não pode ser partidário, muito menos presunçoso e se quer ser propagandista tem que fazer outro tipo de trabalho. Tem que trocar o trabalho do writer pelo do copywriter.


Antes de terminar volto à Cony. Eu imagino que havia uma pressão sobre ele para que produzisse após o golpe de 1964 um romance político. E ele o fez. Mas não o fez sob o ângulo do político ou do militante, mas sob o ângulo do escritor autêntico, o que permite que seus personagens encarnem sempre enigmas e ambiguidades morais e ideológicas.


Cony também deixou uma lição para o escritor inconformado com a temática da hora do mainstream que reclama que as grandes editoras não valorizam seus talentos e que os prêmios não os reconhecem como mereciam porque não estão enquadrados na política literária do tempo. Cony era safo e era carioca. Escreveu um livro que a época pedia, que os editores pediam, com uma temática da hora, a Ditadura Militar a resistência armada contra ela, sem no entanto, fazer proselitismo de nenhuma das causas, nem a da direita, nem a da esquerda. Paulo Simões era ambíguo e imprevisível o bastante para aderir a qualquer ideologia política. Tudo o que ele queria era não morrer de velhice, suicídio ou de moléstia. E aqui, pausa, pausa, pausa! Se a velhice é retratada como um horror, o romance hoje não passaria porque veicula “etarismo”.


Cony fez mais. Usou o tema imediato da Ditadura de 1964 para falar de um mito muito mais antigo: o do Êxodo. No fim das conta Cony estava falando da Bíblia. O ex-seminarista cujo projeto de último grande romance era a retomada da temática de Informação ao Crucificado, fingindo escrever sobre a Ditadura de 64, escreveu sobre temas muito mais ancestral e universal. Depois escreveu um romance intitulado Pilatos que era só miséria, obscenidade, e compaixão.

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