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  • Foto do escritorVinícius de Oliveira.

Um capítulo da novela "Infâmia e Justiçamento"


Santuário do Caraça. Ao fundo, a Igreja de Nossa Senhora Mãe dos Homens,

em primeiro plano as ruínas do antigo colégio do Caraça.




Só relaxei mesmo quando chegamos a Mariana na noite daquela sexta feira. Fomos mamãe, eu, Laura e Letícia. O bebê ficou com a babá e uma irmã de Letícia. A onda do pó durou até chegar lá, mas foi se reduzindo aos poucos a intensidade da reverberação de dopaminas em minhas teias neuronais, a sudorese foi refluindo, a pressão sanguínea baixando, os tremores e delírios se retraindo, tudo gradualmente.


Mamãe ia rever um sobrinho padre. Estávamos no coração de Minas Gerais novamente, na mais católica das cidades históricas de Minas. Fomos, primeiro, ao Seminário Maior São José, de Mariana. Há lá um pavilhão destinado a visitantes. Os quartos são simples. Eu e Letícia tivemos que dormir em camas separadas, camas rústicas de franciscanos. Os quartos eram como celas monásticas, embora o palacete tivesse larguíssimos corredores e vastas salas. O mais impressionante nele é a esplêndida capela interior, com a sua abóbada pintada por um artista italiano imitando o céu católico e as figuras que nele habitariam. Olhamos para cima e temos a impressão de estar contemplando o céu mesmo, digo o céu visto da terra, não um céu metafísico.


O nome de meu primo padre é Padre Paulinho. Um doutor da Igreja. Doutorou-se em Roma com uma tese a respeito de casos especiais de aborto. Pelo que entendi, ao fim de sua pesquisa, fez uma lista dos abortos que a igreja não deveria considerar pecado. As exceções são as mesmas colocadas pelos códigos penais da maior parte mundo: aborto em caso de gravidez fruto de estupro, aborto como estado de necessidade para salvar a vida da mãe, aborto de anencéfalo (esta, a grande novidade proposta à Academia de Ciências do Vaticano pelo Padre Paulinho). Filósofo e teólogo. Dadas suas credenciais acadêmicas e apostólicas, eu esperava encontrar outro tipo de clérigo. A simplicidade do homem, contudo, era impressionante para tão alta graduação. Veio da mesma roça de Cataguases onde nascera mamãe.


Meus avós maternos eram pobres e os filhos foram todos trabalhar cedo, em torno dos 12 anos. Mamãe, depois de bordadeira, foi estudar pedagogia e se tornou Professora do Ensino Público, o pai do Primo, Tio Antônio, continuou na roça, vivendo de parcas rendas da granja de frango que vendia aves para um abatedouro em Visconde do Rio Branco, a Pif Paf. O mais inteligente dos filhos Tio Antônio mandou estudar em Mariana, porque o menino já gostava muito de rezar e o sacerdócio católico sempre garantiu vida livre de miséria, desde os tempos coloniais. Padre Paulinho concluiu o Ensino Médio lá. Graduou-se em Filosofia em Mariana. Depois concluiu mestrado e doutorado na Europa. Tio Antônio não esperava que meu Primo Padre fosse tão longe. Formando, foi convidado pelo Bispo de Mariana para lecionar no célebre Seminário, que é também uma Faculdade particular de Filosofia e Teologia. A Filosofia de lá só agora está sendo reconhecida pelo MEC.


Como havia dito, eu esperava encontrar outro tipo de pessoa. Em primeiro lugar, esperava um padre mais jovem, mas ele é um homem de 48 anos, alto e gorducho, branco, careca na parte de cima, cabelos grisalhos lisos nas laterais, carão largo, bochechas tão cheias e tão largas como as do São Tomás de Aquino das gravuras. Tinha também um riso fácil — aliás é do tipo que só fala com um sorriso envergonhado de rapaz simples da roça o tempo inteiro no rosto — voz adocicada, forte sotaque interiorano. Muito diferente do Padre Diretor de lá, que tem uma voz mais empostada, português escorreito e postura de autoridade eclesiástica.


Padre Paulinho não nos convidou para rezar, não nos perguntou sequer se somos católicos. Em nenhum momento pregou para nós. Nisso difere do chato primo Henrique, atualmente funcionário do INSS, e católico mais tradicional que o Papa Emérito Bento XVI, tanto que nunca usou métodos anticoncepcionais e teve cinco filhos rapazes e duas moças, na contramão de nosso tempo. Henrique vive hoje numa bolha onde não entram os ventos tóxicos da televisão aberta (exceto os programas da Rede Vida ou de outras emissoras católicas). A vigilância dos filhos é rígida e só convive com pessoas católicas tradicionalíssimas ou carismáticas. Padre Paulinho é menos católico que Henrique.


Contou-nos inúmeras coisas sobre a Igreja, sobre a História de Mariana, levou-nos a conhecer as igrejas barrocas de Mariana e Ouro Preto, para Laura uma novidade, para mim uma agradável revisitação, embora eu preferisse revisitar os bares da Rua Direita, em Vila Rica. Fez piadas com sua condição de sacerdote. Ontem no jantar (percebi que ele gosta das lautas refeições e do vinho) terminou dizendo: comi como um padre! Chegou a dizer que iria rogar uma praga se no dia seguinte não pudéssemos ficar no Santuário Natural do Caraça para ver o lobo guará. Nem sempre havia vaga na pousada que fica ao lado da vetusta Igreja do Santuário que visitaríamos. Ri alto. Ele emendou com o sorriso sempre tímido e os olhos baixos: antigamente o povo morria de medo de praga de padre. Revelou-nos, à porta da Igreja do Carmo, que fica ao lado da Igreja de São Francisco e da Câmara Municipal (antiga sede do poder secular em Minas Gerais), numa pracinha ainda coberta de grama, num belo outeiro. Naquele local, na época do Brasil Colônia, os padres anunciavam nas missas que um negro seria açoitado. Talvez pelo crime de “lavar a égua” (roubar ouro do patrão lustrando a égua com água cheia de ouro em pó no pelo). Quando era anunciado o castigo dos negros, a praça se enchia, o negro era exposto e chicoteado no pelourinho que ainda está lá. Paulinho conta a história rindo, mas entendemos que, implicitamente, há uma crítica ao proceder de seus ancestrais sacerdotes. Muitos desses ancestrais aplicavam o “conto do vigário”, conforme nos contou na Mina de Passagem (uma mina subterrânea de 100 metros de profundidade, acessada de modo incrível por um carrinho de trem movido por uma roldana elétrica e cabo de aço) um mulato historiador oral muitíssimo engraçado que já conhecíamos de outra feita. Os vigários enganavam os negros pedindo a e eles que trouxessem um conto da moeda da época em ouro em troca de comprar a alforria dos coitados. Recebiam o outro, que muitas vezes vinha escondido em “santos do pau oco”, mas não cumpriam o acordo. De certo, pagavam pau para os aristocratas mineradores escravagistas.


O negro se ferrava com os “contos do vigário”. Caputo aprovaria a prática. Didi também. Imaginei Arcanjo ali açoitando os negros.


O palacete do Seminário Maior de Mariana foi construído em H, formato obediente a um ditame narcísico do Bispo Dom Helvécio, na década de 1950, mas já havia seminário na cidade desde duzentos anos antes disto. É no palacete de Dom Helvécio que Padre Paulinho dá aulas e convida outros professores leigos, muitos dos quais filósofos ateus da Universidade Federal de Ouro Preto. Paulinho nos diz que trazê-los aqui para dar aulas é bom para fermentar o pensamento. Fico pensando se, lá no fundo, Padre Paulinho não é um agnóstico. Ou se não está a serviço de George Soros. Não, creio que ele tem fé sim, a fé sincera dos mineiros simples, sem dar muita trela para as elevadas elucubrações teológicas e indagações filosóficas. Creio que para ele, que tem um perfil prático, moderno, bem instalado no conforto deste mundo, onde aprecia os bons vinhos, as boas viagens, a boa comida, estas elucubrações são meros esportes cerebrais. Porém valoriza o domínio destes esportes, pois têm servido a ele de instrumento para alcançar a sua posição social. Essa minha suspeita quanto ao caráter esportivo da filosofia para os profissionais da filosofia, creio que se aplica também aos professores filósofos das universidades laicas. A filosofia para eles é apenas ganha pão, suas teses e papers, são como relatórios que um funcionário do Ministério do Planejamento tem de preencher para garantir o salário ao fim do mês. Mas talvez eu prejulgue os filósofos laicos e os religiosos profissionais. Talvez Padre Paulinho seja humilde demais e não queira ficar esbanjando seu conhecimento mais profundo e suas angústias íntimas. Filosóficas, teológicas, metafísicas, existenciais.


Placidez, compreensão, espírito pragmático, preguiça, bondade (comprou uma cabeceira d´água em sua terra para beneficiar os irmãos e vizinhos, ou melhor, para que a água não caísse em mãos egoísticas que não quisesse compartilhá-las, pois nas mãos dele haveria o uso coletivo da água, que é escassa no local). Padre socialista utópico. Ou simplesmente padre.


No domingo tomamos o rumo de Catas Altas e Santa Bárbara, cidades vizinhas que dão acesso ao Parque Natural do Caraça, ficando ao pé da Serra homônima. Ao chegarmos, Padre Paulinho nos conduziu direto ao átrio da Igreja neogótica de Nossa Senhoras Mãe dos Homens. Na noite fria daquele domingo, não apareceu o lobo guará para o repasto de resto de carnes que fora deixado numa bandeja amaçada de alumínio. Apareceu um cachorro do mato.


Súbito, notei a presença, no átrio daquela igreja, sob um luar magnífico, de uma ruivinha, quase loira, de pele bronzeada e olhos verdes. Ela falava espanhol e tentava entender o que era um cachorro do mato. Mamãe tentou explicar-lhe, em portunhol, mas não conseguiu. Um lavrador que ali fazia faxina só complicou as coisas: “é um cachorro que veve no mato.” Letícia interveio com seu inglês de cursinho e muitas viagens à Miami: a wild dog. A garota de olhos tão inteligentes e curiosos e um sorriso lindo deu-se por satisfeita.


Dormi pouquíssimo. Acordei ainda antes das seis da manhã, na noite de domingo para segunda. Fui para fora da hospedaria humilde em que estávamos. Ventava e ainda estava escuro, sem o lusco-fusco da alvorada. O dia amanheceria nublado. Ouvi uivo de lobos, olhei para a velha igreja gótica e o fim da madrugada entrando pelos meus olhos, pele e ouvidos, me inspirava grande serenidade. O frio era andino. Estávamos no mês de julho. Subi um pouco as escadarias do calvário que fizeram de frente para o desativado Colégio do Caraça, que fica ao lado da Igreja de Nossa Senhora Mãe dos Homens. Pousei meus joelhos no chão e fiz minhas orações ao Crucificado. O pai sempre dizia: por via das dúvidas, reze.


O Parque Natural ou Santuário do Caraça foi fundado quando chegou lá, em 1.768, o nobre português Carlos Mendonça de Távora, fugindo da perseguição que o Marques de Pombal, déspota ilustrado, impingia a sua família, a jesuítas, e à Igreja Católica. No Brasil, temendo a perseguição, tomou o nome de Lourenço, e mais tarde, Irmão Lourenço da Ordem Terceira dos Franciscanos. Uma ordem de padres leigos. Mudou de nome, abdicou de sua herança e foi morar primeiro próximo ao Tejuco, no Serro, próximo a atual Diamantina. O Padre Senellius, autor do romântico, apologético e historiográfico Guia Sentimental do Caraça (de 1.953, só reeditado em 2005), em meio a saborosas histórias que não constam de nossa historiografia, esforça-se por desmentir que Irmão Lourenço fora um ávido caçador de metais preciosos, um possível assassino e comerciante avaro, antes de sua conversão, como narram as histórias orais a respeito do fundador do Caraça. Ordenou-se no Tejuco e partiu para uma missão religiosa no Caeté (atualmente uma cidade da região metropolitana de Belo Horizonte). Primeiro, foi colaborador de um clérigo local, mas se desentendeu com ele, pois queria criar um seminário para a formação de padres missionário, enquanto o clérigo, também fugitivo de Portugal, queria criar em Caeté um mosteiro. Embrenhou o Irmão Lourenço então na mata. Subiu a serra virgem e parou num planalto (Pe. Senellius chama de planície) a que deu o nome de Serra de Nossa Senhora Mãe dos Homens. Instalou lá uma ermida e uma castela. Celebrou a primeira missa para fazendeiros, escravos e mineiros locais.

Apesar de ser um perseguido do Governo de Pombal, se virava, dava seus pulos, porque, como nobre de nascença, tinha boas relações com gente importante do Governo local de Minas Gerais e com a Cúria Romana, cujo entreposto mais próximo ao Caraça era a seminal Arquidiocese de Mariana, uma das primeiras do país. Assim não só se livrou da perseguição de Pombal como ganhou o Caraça em doação, como sesmaria.

Seus contatos no Vaticano também o ajudaram a trazer para o Brasil relíquias religiosas (sempre de veracidade histórica duvidosa): pedaços do túmulo de São Lino, o segundo Papa após Pedro, objetos que teriam sido tocados por apóstolos, e, a mais impressionante, uma formidável múmia de um soldado romano, cujo esqueleto, desenterrado na Itália, fora coberto de gesso ou material parecido, tornando-se uma estátua que ainda conserva dentes e unhas do defunto original. Este soldado é reconhecido como um mártir católico porque fora assassinado por se negar a abjurar sua fé. Se era soldado romano, num tempo de perseguição a cristãos, de certo, viveu entre meados do século I, quando o culto novo começou a tomar Roma e a conversão oficial do Império Romano em 314 d.C, sob o imperador Constantino, ídolo de Caputo. É uma relíquia antiquíssima. Talvez uma das mais antigas do Brasil. E praticamente desconhecida. A esta múmia é dado o nome de São Pío Mártir. Suas vestes riquíssimas de soldado e um capacete de centurião, estão junto ao seu corpo numa tumba transparente que, no tempo de Senellius, ficava na lateral da Igreja, mas que hoje está defronte do altar da catedral gótica.


Irmão Lourenço atraiu muitos missionários para seu santuário, mas não conseguiu, em vida, fundar um colégio como queria. Nascido em 1.741, morreu em 1.817. Pouco antes, teria tido uma visão mística da Virgem Maria. Não é santo oficial da Igreja, mas foi cultuado como tal, embora hoje esteja no mais absoluto limbo de trevas do esquecimento popular absoluto. Só é lembrado no Caraça. Em seu tempo, teve um vai e vem de colegas frenético em sua ermida, era muito conhecido. O Bispo de Mariana, na época não deu muita importância a sua missão. Pensava que a empreitada religiosa de Lourenço terminaria em breve, mas aqui estamos, em 2018, apreciando a beleza natural esplêndida dessa Serra, a igreja gótica, e as ruínas do antigo colégio. Seu esforço se estendeu pelos séculos.


O Caraça só começou a florescer, de fato, com a vinda de clérigos de uma ordem fundada pelo francês São Vicente de Paulo; oficialmente, mas não popularmente, nos conta Sennelius, conhecida como ordem dos irmãos lazaristas. Atualmente, são conhecidos como vicentinos. A ordem tem esse nome porque seu fundador era um caridoso dedicado a doentes, leprosos, velhos. Dentre eles estava o futuro Dom Viçoso, um dos mais importantes bispos da época do Império. Arcebispo de Mariana, Dom Viçoso transformou o antigo “hospício” (antigamente a palavra queria dizer apenas hospedaria religiosa) em um dos mais importantes colégios do país no século XIX. Durou de 1.820 a 1.910. Em sua fase áurea, na segunda metade do XIX, abrigou também o Seminário Maior de Mariana, formando, portanto, não só alunos daquilo que conhecemos hoje como Ensino Fundamental e Médio, mas também padres.

O Colégio do Caraça foi transformado em Museu. Nele há uma foto de muitos meninos estudando, vestidos em roupas eclesiais pretas. Fico imaginando que eles deviam se comportar como nós no grupo de escoteiros.


O colégio foi reconhecido pelo Imperador Pedro II. O local era propriedade sua, eis que assim foi a vontade do Irmão Lourenço, registrada em testamento. Em suas disposições de última vontade, escritas quando Dom João VI ainda era um príncipe regente, o fundador asseverou: que o Caraça ficasse sob a proteção do príncipe do Brasil e que fosse destinado à edificação de um colégio ou de um seminário. Senellius afirma categoricamente que, no século XIX, o Colégio do Caraça era o mais importante do país. Aliás, Pedro II é um personagem importante lá. Pelas paredes dos corredores dos prédios contíguos à Igreja vemos inúmeros cartazes com uma frase que teria sido dita pelo Imperador brasileiro:


“O Caraça paga toda a viagem a Minas Gerais.”


Na Serra do Caraça, o Imperador teria travado uma interessante discussão com o padre francês que ministrava uma aula de teologia, chamado Clavelin. Eis o diálogo:


CLAVELIN: A Igreja é uma sociedade perfeita, independente e distinta, mas não separada da sociedade civil que é subordinada à Igreja.


IMPERADOR PEDRO II: Como chefe do Poder Civil e Defensor nato da Constituição brasileira protesto contra essa doutrina.


Essa doutrina, me explicou João Lucas pelo whatsapp, era a Teoria Política de Tomás de Aquino, segundo a qual a soberania, no fim das contas, pertencia à Igreja, não ao Poder Civil ou Secular. Embora independentes, quando surgisse divergência entre os dois poderes, deveria prevalecer a vontade da Igreja. Dom Pedro, pós-iluminista, admitia a independência do Poder da Igreja, mas não admitia que o Império estivesse subordinado a ela, antes o contrário.


Mas Pedro assistiu com muito interesse às aulas do Pe. Clavelin e de outros, fez perguntas intrigantes, ficou encantado com a Serra, mandou pintar um quadro por um artista de alguma legação holandesa, e, em Ouro Preto, teria dito a um cidadão do Império que tinha dúvidas sobre mandar um filho estudar no Caraça: mande rápido, mande logo, ou algo assim. Teria dito ainda que em suas viagens pelo Brasil e pelo mundo não vira um colégio tão bom quanto o do Caraça.


O Caraça foi herdado em sesmaria pelo Irmão Lourenço e doado ao Príncipe Dom João VI que passou a Pedro I e Pedro II, que, por sua vez, doou o latifúndio paradisíaco à Congregação da Missão dos seguidores de São Vicente de Paulo, conhecidos como lazaristas. Até hoje são eles os proprietários da imensa área de preservação ecológica privada. Repare: todo aquele imenso paraíso natural alpino não pertence ao Estado Brasileiro, pertence a uma ordem da Igreja Católica.


Não vejo problema nisso. Quilombolas também possuem muitas terras com áreas de preservação ambiental. E também índios. E também a família de Luciano Huck.

Padre Clavelin foi o grande maestro do colégio em seus tempos áureos, quando chegou a ter 400 estudantes do Curso de Humanidades e 40 pretendentes a padre. Foi também o vicentino francês quem construiu a Igreja, a partir de uma capelinha deixada pelo Irmão Lourenço. Por algum motivo, não gostava do barroco, por ser, por assim dizer, esteticamente evangélico, protestante demais, e preferiu imitar as igrejas medievais da França, daí a escolha do neogótico.


Muita gente importante se formou no colégio do Caraça. Há um cartaz lá com o nome de pessoas públicas famosas. Constam na lista três ex-Presidentes: Delfim Moreira, Juscelino Kubistchek e Jânio Quadros.


Os tempos áureos do Colégio do Caraça foram entre 1.820 e 1.910, já o disse, mas o local permaneceu como “Colégio Apostólico” até 1.968, quando teve seu fim de forma catastrófica: um aluno esqueceu ligado um velho aquecedor elétrico de pães, cheio de grossas resistências, para atender a um padre-professor que o chamava e um curto-circuito acendeu a faísca que se espalhou e incendiou todo o educandário. Só em 1.988 foi reformado. Agora é museu. Padre Senellius conta que o Bispo de Mariana da época do Irmão Lourenço teria dito que aquilo ali não duraria muito. Muito pelo contrário, continua vivo o santuário, mudou de forma várias vezes, e é possível que sobreviva ao Brasil, como sobreviveu às mortes do Primeiro Império, do Segundo, da República Velha, do Getulismo, da Nova Democracia de 1945 a 1964, do Regime Militar.

À noite de segunda-feira, pouco antes de eu tomar um banho e seguir novamente para o átrio dos fundos da velha Igreja, me sentei um pouco na pequena biblioteca de um dos prédios contíguos, hoje uma singela e confortável pousada. Havia muitos livros antigos, mas escolhi dois de literatura contemporânea: um de contos do Sérgio Santana, O Conto Zero, e outro de um autor francês até então desconhecido para mim, o romance ganhador do Prêmio Goncourt de 2012: Sermão da Queda do Império Romano, de Jerôme Ferrari. Na epígrafe do romance, há um sermão de Santo Agostinho, Bispo de Hipona no Norte da África, já muito velho, tranquilizando o povo em relação à queda do Império, após a invasão bárbara de 410. Agostinho faz uma analogia entre a morte do império romano moribundo e a morte de um homem velho. No romance, a epígrafe é muito significativa: um dos personagens é um homem muito velho que viveu a I Guerra Mundial e está moribundo morrendo no último capítulo, o único que li. O trecho fala do nascimento, crescimento e morte das civilizações. Agostinho havia mandado que os cristãos sossegarem o facho apocalíptico, convencendo-os de que o fim do mundo nem estava próximo, nem ninguém jamais se poderia saber quando viria. O final do trecho é o mais belo: fala do eterno renovar e renascer das coisas que morrem. Nada more para sempre, apenas se transforma:


“Tu te espantas que o mundo chegue ao fim? Mais vale que te espantes de chegar a idade tão avançada. O mundo é como um homem: nasce, cresce e more […] Na velhice, o homem vive assolado por misérias, e o mundo na velhice, vive também assolado pelas catástrofes […] Cristo diz: o mundo vai partindo, o mundo está velho, o mundo sucumbe, o mundo provecto respira ofegante, mas não tenha medo: mas não tenha medo: tua juventude há de se renovar como uma águia.” (Santo Agostinho, Sermão 81, §8º, dezembro de 410).”

Mas divago demais. Voltemos aos personagens de minha história, ao que interessa, de fato. A moça que falava espanhol e ficou conosco esperando o lobo-guará até tarde na gélida noite de segunda-feira continuou lá depois de nós. Chamava-se Shayne, que quer dizer linda, em yidish, e para a minha estupefação era judia e israelense! Pior: policial israelense. Tinha um sorriso firme permanente, uma carinha arredondada, olhos verdes, cabelos loiros levemente anelados, pintas acima dos seios, um corpo bem recheado e talhado em curvas feminis, e apetitosos médios seios. Estava no Brasil havia meses. Viera do Uruguai onde nascera, por isso dominava tão bem o espanhol. Estava atravessando o Brasil sozinha, já tendo passado pelo Sul, por São Paulo, pelo Rio de Janeiro, e agora viera conhecer as cidades históricas de Minas Gerais. Ficamos amigos.

Na manhã de terça fomos andar, ou para ser mais hipster, fazer tracking, nas trilhas do Caraça. Shayne veio conosco. Chegamos a um imenso morro de pedra onde descasamos após duas horas de caminhada com sol à pino. Eu e Laura riscávamos nossos nomes na rocha. Convidamos Shayne a fazê-lo também, mas a judia disse que preferia não riscar seu nome como nós. Não queria mudar a paisagem nem um só milímetro. Quando íamos voltando pela trilha, pensou e continuar sozinha, mas mudou de ideia e decidiu seguir conosco.


Viajei que Maria Madalena, que também era judia, podia ser uma mulher parecida com ela. Naquele paraíso místico-natural, de clima temperado, que nada fica a dever às florestas germânicas, talvez Shayne fosse uma aparição sobrenatural. Não sei. Talvez fosse uma agente do Mossad que viera rastrear terroristas muçulmanos na Tríplice Fronteira, ou em Pedro Juan Caballero, e, quem sabe, matá-los secretamente. Fiquei deslumbrado com o mistério daquela moça. Com a coragem com a qual estava explorando, sozinha, a América Latina, e pela forma como demonstrava empatia por todos que encontrava no caminho. Shayne me transmitiu a sensação da mulher forte e misteriosa. E solitária. Quase me apaixono, mas tenho duas mulheres brasileiras.

Quantas mulheres tem essa coragem de sair pelo mundo assim, solitárias? Isso me faz pensar que ela é mesmo uma alucinação, ou aparição sobrenatural, ou então está em serviço, secretamente, já que confessou ser policial, não agente secreta. Mas que agente secreto revelaria sua identidade?


Shayne vinha do berço de nossa civilização judaico-cristã. Asquenaze, nossos ancestrais eram compatriotas; de certo, sou descendente de família de portugueses que abandonaram o judaísmo, mas gente do ramo sefardita, mais amorenada. Shayne morava a poucos quilômetros de Tel Aviv, ao sul de Israel. Sendo de Tel Aviv, tinha costumes laicos, liberais, cosmopolitas e globalizados e, certamente, não votava nos conservadores de Israel e era favorável à paz com os árabes. Rimos bastante quando disse ela que Israel, um Estado em permanente estado de Guerra, era menos perligroso que o Brasil, pois lá eles sabem de onde o perigo vem e suas sirenes avisam do perigo iminente de bombardeio. Além disto, possuem quartos blindados em casa para se refugiar com os parentes e as crianças quando caem as bombas dos palestinos.

Aquela aparição se despediu de nós com um carismático sorriso em frente à sala de turistas. Disse que seguiria dali para a Bahia, pois já conhecera o Rio de Janeiro e o que interessa em Minas. Jamais verei Shayne novamente. Mas ela foi só mais uma das aparições misteriosas que encontrei nesses místicos dois dias e meio no Caraça.

Antes de me despedir, fiz a ela uma pergunta que a deixou sem entender nada, com a típica cara da incompreensão absoluta:


“Shayne, uma última coisa. Você é policial. Sei que seu trabalho cobra sigilo, mas você poderia me dizer se há alguma célula terrorista iraniana no Brasil? Alguém querendo fazer uma Revolução de Aiatolás aqui? Uma coisa assim, meio que de Aiatolás cristãos?”


Letícia, que estava de bom humor em seus trajes fitness, caiu em gargalhada e, me puxando pelo braço, me chamou para ir embora.

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