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  • Foto do escritorVinícius de Oliveira.

Trecho do conto "Último Diário de Recaída."

Na vida só encontrei gente de carne e osso em botequins e clínicas para dependentes químicos. Talvez a encontrasse também na cadeia. E aqui estou novamente internado. A enfermeira vem me despertar às seis da manhã para o comprimido de omeprazol: a medicação que vem depois incendeia o estômago. Não fico nem mais um minuto na cama depois disso: amante das madrugadas, e notívago, tenho dificuldades de obedecer ao toque de recolher da clínica, às dez da noite. Assim, já começo a colocar o corpo em movimento bem cedo, para ter sono antes da zero hora. É fevereiro, ainda estamos no horário de verão. Desço as escadarias da clínica Redenção e me deparo com o lusco-fusco da alvorada. O alaranjado de além dos mares de montes cobertos pela mata atlântica, me remete às suaves emanações do despertar na infância, bem como a uma sensação calma e pura de que não houvera um ontem. Uma leve euforia de estar ali, simplesmente vivo, diante de um bosque, do canto dos pássaros, e do nascer lento do sol me toma

(...)


Comecei este diário narrando a serenidade da manhã. Esta semana esteve anormalmente calma, mas aqui não se passam duas semanas sem que tenhamos arranca-rabos e quebra-paus. Lembro-me de um que envolveu Jeremias, na primeira vez em que estive internado em Rendição. Jeremias era uma espécie de falso pastor evangélico com barba de muçulmano. Se dizia próximo de Deus e do Diabo. Numa manhã, após um dia inteiro de uso abusivo de crack numa orgia arrasa-quarteirões, com meia dúzia de garotas de programa, quando a festa, as drogas, a bebida e o dinheiro acabaram, e veio o "e agora José", Jeremias, já sem uma molécula sequer de dopamina ou serotonina em sua teia neuronal, pensou em explodir os miolos. Duas vozes o dissuadiram: a de Deus, que dizia ter um propósito para a sua vida; e a do Demônio, que lhe dizia que a dor ia passar logo, logo. Na própria interpretação, Jeremias dizia que a intenção do Demônio era humilhá-lo mais antes de matá-lo, e de destruir sua família. Por isso, pediu para ele não se matar naquele instante (...) "Mais próximo de Deus, mais próximo do Diabo". Sempre me intrigou essa frase, que, não sei bem, já li em mais de algum autor. Ela dá ganas de inscrever uma síndrome psicanalítica no CID: A Síndrome de Rei Davi. Tal como o grande patriarca dos Judeus obteve do Altíssimo a concessão de violar o mandamento de não matar, ceifando a vida de uma mulher para desposá-la, penso que muitos sacerdotes também se veem nessa situação: o seu carisma extraordinário, seus dotes excepcionais de arrebanhadores de fiéis, teoricamente, lhe concederiam o privilégio de infringir as leis de Deus, mas da forma mais escandalosa possível. Penso no Padre Marcial Maciel Degolado e seu exército de coroinhas que foram abusados, ou no Reverendo Martin Luther King fodendo putas brancas "pela graça de Deus", segundo a arapongagem do FBI.



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