Trecho do conto "Um Luau no Hospício"

“Pacientes psiquiátricos costumam ter opiniões fortes sobre tudo, mesmo lhes faltando conhecimento e cultura suficientes. Vitor Hugo observou que a escassez de conhecimento e de cultura pareciam agravar a condição patológica do interno, quando eles aprendiam e acreditavam em alguma doutrina teológica sem tê-la estudado em profundidade. Nesses casos, a ignorância, fruto de um conhecimento mal sedimentado, revelava-se um poderoso escudo contra a superação da insanidade. Um árduo trabalho para psiquiatras e psicoterapeutas. Talvez, por isso, Platão não aconselhasse a filosofia para qualquer um...

Era o caso de Naiara. Uma bela jovem de tez morena, olhos negros ligeiramente puxados, rechonchuda e falante. Conhecia a tradição bíblica através de uma igreja protestante. Um dia sentou-se com Vitor Hugo e, tirando um cigarro da fenda entre os fartos seios bem expostos num decote, disse que precisava parar de fumar, porque os cigarros a impediam de conquistar o dom da santidade. Naiara era do tipo encrenqueira. Depois de discutir com enfermeiras, tentou fugir e arrombou um portão com a sua força de Sansão. Vitor riu do que lhe parecia ser uma interessante comparação. Mas a moça estava falando sério.

- Não. Eu recebi o dom da força de Sansão. O Sansão, do Antigo Testamento.

-Entendo.

-Conhece a história de Jó?

-Claro.

-Tenho o dom da paciência de Jó também.

- Mas não usou no caso do arrombamento do portão...?

- Jesus fez uma arruaça com os vendilhões do templo, lembra?

-Ah, entendi.

-É graças ao dom da paciência de Jó que estou aguentando nove meses aqui. Minha mãe está de conluio com esse Dr. Evaristo. É uma megera. Me obrigava a trabalhos forçados em casa. Nunca aceitou os meus dons. Diz que é coisa da minha cabeça. Ela é ímpia. Eu oro por ela, pelo menos ela aceitou a ajuda de Iemanjá.

-Iemanjá? Mas você não é evangélica? Evangélicos não acreditam em Iemanjá.

-Iemanjá é uma das minhas protetoras.

-Deusa Atena?

-Talvez, mas não conheço muito de mitologia. Conheço mais de Umbanda. Qual é o seu protetor na Umbanda?

-Não sei. Não conheço bem a doutrina.

A moça ficava elegante fumando de pernas cruzadas, mostrando as coxas fortes, sob o vestido florido, e o decote era magnetizador.

-Chico Xavier? – continuou Vitor, procurando entender mais a moça.

-Isso é espiritismo. Para mim é manipulação demoníaca.

-Mas umbanda não é espiritismo?

-Eu falo do kardecismo. Coisa de católicos enrustidos. Papa, gosto só do Francisco, ele sim tem dons espirituais. Mas a Igreja Católica se perverteu. Minha mãe queria me obrigar a ir a missas. Não vou!

-Aquele rapaz que você tá namorando aí diz que é católico, hein, Naiara?

-Agnóstico.

-Pensei que era católico. Mas como assim o kardecismo é coisa de católicos infiltrados?

-Porque eu sei. Sou vidente. Me dá a sua mão.

Vitor entregou a ela.

-Signo?

-Sargitário.

-Sua aura é boa. Vai largar as drogas. Tem uma mulher linda te esperando lá.

-É, tem mesmo. Chama-se Ana Luísa, mas está sem falar comigo depois de minha última recaída. Acho que não tem volta.

-Não, eu falo de sua mãe. Ela é linda, de espírito e de rosto.

-Minha mãe é católica.

-Ainda vai se coverter... Eu vejo.

-Mas ela vai se converter a quê, precisamente? – indagou Vitor quase rindo de tanta confusão.

-À verdade! A Cristo. Ao Cristo verdadeiro, que morreu por nós na cruz.

-Ah, bem.

-Sabe – continuou Naiara – esse cigarro atrapalha a minha santidade.

-E namorar escondido, hein, Naiara... Você não precisa de santidade para ser santa?

-Claro que não. Conhece a história de Salomão?

-Desse, não.

-Tinha um harém. Castidade é bobagem de católicos e kardecistas. Aliás, por falor em Salomão, eu adquiri o dom da Sabedoria.

-A mesma Sabedoria do Rei Salomão?

-Exatamente!

-É visível. – Naiara jamais notaria a ironia.

-Que dons mais você tem, Naiara. Força de Sansão, clarividência, Sabedoria de Salomão...

-Sou excelente cozinheira. E tô aprendendo slackline também com o Bico – Bico era Fabrício, o namoradinho dela, rapaz feio como o diabo que a menina tratava com muito carinho, como se fosse um ursinho coala.

-Bico tá com uns sonhos estranhos... Botei ele pra fazer a novena do Arcanjo São Miguel.

-Mas ele não é agnóstico?"