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  • Foto do escritorVinícius de Oliveira.

Trecho do conto "Neuroquímica e Fantasmagoria."

Terça passada, à noite, depois que as crianças dormiram, eu e Edu conversávamos sobre o projeto de pesquisa dele em filosofia da mente. Eu lhe explicava os mecanismos neuroquímicos e neurofisiológicos da epilepsia do lobo temporal, a doença sagrada, conforme o epíteto, inspirado em Homero, que lhe pregou o Dr. Oliver Sacks em "Hallucinations". Sacks, narra inúmeros casos clínicos de pacientes acometidos dessa doença, que têm visões ou audições de entidades sobrenaturais, como o de um sujeito que dizia ouvir o Cristo (Cristo") mandar que ele matasse a própria esposa e filhos. Um delírio derivado de uma superestimulação elétrica de certas áreas do cérebro, muito parecida com a superestimulação produzida por psicotrópicos.


Edu me explicava que estava trabalhando atualmente para combater argumentos apressados de neo-ateus militantes, que se valiam destas descobertas científicas para atacar religiões. Edu me diz que estes ávidos leitores da Revista Superinteressante consideram definitivas as explicações naturalísticas, como a da epilepsia do lobo temporal, para as visões ou audições sobrenaturais - não só dos médiuns espíritas, mas também dos santos e visionários cristãos, em seus encontros com anjos, demônios, santos, ou com o próprio Jesus Cristo e com a Virgem Maria. E graceja o Edu: para esta gente, se existisse o gardenal no tempo de William Blake, e dessem esse remédio a ele, hoje a gente não teria aquelas pinturas e desenhos espetaculares que ele fazia quando estava com a mente aberta para o transcendente; se existisse a carbamazepina, aquele antiepilético que você diz que aplica em seus pacientes, e dessem o remédio a Santa Terezinha, ela não teria aquelas visões de Cristo e não seria cultuada como santa pelos católicos... Dá para imaginar mais: Paulo de Tarso teria continuado a perseguir cristãos, Swedenborg seria definitivamente um louco.


Sentados ao redor da mesa da cozinha, cada um com seu laptop e seus óculos intelectualoides de aros grossos, pergunto a Edu qual é mesmo a sua resposta para os neo-ateus. À guisa de um bom filósofo que nunca ataca a questão diretamente, sempre fazendo prolegômenos, ele me responde que primeiro devemos colocar a questão em seu campo de batalha adequado, que é a polêmica entre fisicalistas e dualistas. Ele me diz que ela é milenar e remonta ao século IV a. C., com os ataques de Platão a Demócrito. Este defendia que a alma é um mero aglomerado de átomos, que desaparece com a desintegração do organismo, na morte; enquanto para Platão, a alma tinha existência independente da matéria e, aliás, uma existência mais real que a dela. Em "Apologia de Sócrates", Platão não deixa dúvidas de que a surpreendente serenidade de seu mestre, diante da execução iminente, provinha de sua absoluta confiança na continuidade da existência da alma após a morte, me conta Edu, enquanto eu o ouço com os cotovelos na mesa. Ele entende que a atual polêmica entre fisicalistas e dualistas não é mais que a reedição da velha polêmica entre Demócrito e Platão, e que não há previsão de quando os filósofos vão definitivamente resolver o problema. Aí chegamos num ponto essencial, me diz Edu: enquanto esse problema filosófico de fundo não for resolvido, ninguém pode afirmar ou negar em absoluto a imortalidade da alma. Ele engatou uma quinta e continuou, empertigando-se na cadeira: "Existem ainda muitas outras explicações científicas, de base neurológica ou não, para as visões sobrenaturais. Você mesma me disse que algumas delas associam as visões extraordinárias a descargas anormais de dopamina nos circuitos neuronais, tal como acontece nas paranoias dos cocainômanos. Mas, como eu venho sempre dizendo, no nível filosófico, acima das descobertas científicas, não temos uma resposta para a questão. Simplifico um raciocínio complicado que estou procurando desenvolver com as técnicas da filosofia analítica: tudo o que a ciência comprovou (inclusive com aparelhagens modernas de sondagem da atividade cerebral) é que há uma correlação entre a superestimulação anormal de certas áreas do cérebro e determinadas visões supostamente sobrenaturais - mas nada diz sobre a realidade da visão. A ciência apenas confirma uma correlação. Para mim, trata-se de um problema tipo o ovo ou a galinha: a superestimulação gerou a visão irreal ou a visão de algo fantástico, mas real, gerou a superestimulação? Aí eu volto a Huxley e a sua concepção do cérebro humano: ele funcionaria como uma ´válvula redutora de percepções´, impedindo a visão de coisas ou seres sobrenaturais ou reais, para que possamos viver em paz na realidade cotidiana material. Estes seres estão aí invisíveis porque a válvula redutora não nos deixa percebê-los. Como e por quê? É um mistério. Estamos longe de confirmar esta hipótese de Huxley, mas ela não pode ser descartada de plano."

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