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  • Foto do escritorVinícius de Oliveira.

O Companheiro de Adélio no Manicômico Judiciário.

1.

Era um paciente singular. O Dr. Ronaldo Laranjeira já internara em sua clínica paciente portadores de uma ampla gama de transtornos obsessivo-compulsivos enquadrados na categoria de dependência química. Alcoólatras, cocainômanos, maconheiros, craqueiros, viciados em opioides, usuários (raros no Brasil) de heroína. Com o passar dos anos a dependência química foi alargando o seu espectro de comportamentos enquadráveis. Entraram jogadores tradicionais de jogos de azar, como o baralho e a roleta, bem como os adictos de videogame. Entraram viciados em sexo, em séries da Netflix, em vídeos pornográficos, em redes sociais.


Neste subgrupo, os casos mais graves eram o dos viciados em postagens políticas. Pouco se fala, mas Dr. Laranjeira orienta uma pesquisa sobre pessoas que passam o dia inteiro tuitando contra o comunismo do Partido dos Trabalhadores ou contra o fascismo de Bolsonaro; contra o neopopulismo mundial, ou contra o globalismo dos burocratas internacionais. Muitos perderam empregos, emagreceram, envelheceram precocemente, abriram as portas para vícios em drogas pesadas, e acabaram na rua furtando celulares para acessar o tuíter, o feicebuque ou o instagram. Um homem acabou na clínica do Dr. Laranjeira após sair de uma UTI onde tratara uma infecção generalizada. O celular que furtara em São Paulo, na Praça da Sé, estava contaminado. Foi no dia em que Lula fora preso após a confirmação da sentença de segunda instância. O homem, um professor universitário afastado do trabalho no Departamento de Letras da Unicamp devido ao vício em postagens políticas fora tomado pela ira naquele dia. Vagando pela madrugada paulistana, na região conhecida como cracolândia, engolira um celular furtado a um fumador da pedra insaciável. O telefone estava contaminado com muitos germes, e como não comia há uma semana, instalou-se em seu trato digestivo um primeiro foco de infecção que depois tomou toda a cadeia linfática e a circulação sanguínea do doutor em Letras. Mas o paciente daquela manhã era um tipo bastante inesperado: um escritor. Seu nome era Ricardo Lísias. Após aconselhamento de seu psicoterapeuta, cineasta-freudiano, foi procurar o Laranjeira para curar-se do vício terrível de escrever um diário-panfleto político contra o fascismo que, como todos sabemos assola a República brasileira há alguns meses.


Lísias esfalfava-se em 24 horas de trabalho ininterrupto. O fundo de poço (condição necessária, segundo terapeutas em dependência química para que se faça necessária uma internação) fora um surto psicótico, classificado como colapso nietzscheano. Nessa condição, o doente é encontrado nu em público afirmando ser um misto de dois personagens-símbolo, seja de uma religião, de uma filosofia, ou de uma ideologia política — um que combatia com veemência, e outro que louvava com ardor. Tal como Nietzsche declarou-se o Dioniso-Crucificado no início de seu colapso terminal, Lísias assomou à porta do Palácio do Planalto, em Brasília, na manhã do dia 20 de maio de dois mil e dezenove, vestindo apenas cuecas e uma gravata. O policial que o prendeu dizia que o escritor insistia em entrar para trabalhar, pois era o Presidente da República, soi-disant Luís Inácio Bonaparte Bolsonaro da Silva.


Na entrevista com Laranjeira, Lísias já havia tornado a si, graças a dois dias de sono profundo induzido pelo coquetel de haldol e diazepam, duas potentes medicações tarja-preta, a primeira um antialucinógino; a segunda um ansiolítico . Sentia como se tudo em torno estivesse em voz baixa e câmera lenta. Vestia moletom cinza e trazia no colo um exemplar de Nove Noites, incensado romance de Bernardo Carvalho, sobre o qual pretendia trabalhar para descansar da faina contra-fascista de seu famigerado Diário da Catástrofe Brasileira. A primeira coisa que o Doutor fez foi pedir que lhe entregasse o livro. É melhor descansar o intelecto, Ricardo. Recomendo não ler por 30 dias. Pálpebras caídas, ainda em decorrência das medicações, Lísias se limitou a franzir os lábios e cabisbaixo olhar para o lado.


A leitura é uma ferramenta terapêutica, mas há uma variedade muito grande delas, disse o Doutor com sua cabeleira branca à Beethoven e fala esterilizada profissional. As que recomendamos a intelectuais em situação de colapso emocional-cognitivo são de outra natureza. Os terapeutas aqui trabalham com a leitura da literatura do programa de 12 passos de alcoólicos e narcóticos anônimos, mas até isso vamos evitar. E Lísias com uma voz de decepção resignada respondeu: 30 dias, Doutor…!

Dr. Laranjeira não se demorou muito na anamnese. Sua agenda era cheia. Havia mais de 50 pacientes esperando. Com as enfermeiras, psicólogos e outros psiquiatras colegas de trabalho, Laranjeira fazia um chiste recorrente: em todo o país, só não sou mais requisitado que João de Deus, e ter assumido, agora, a pole position, com a prisão do medium, não me envaidece.


Posso ligar para a mamãe? perguntou Lísias. Não comprei ração pro Paulo Freire essa semana. Paulo Freire?, sorriu Laranjeira. É, Doutor, meu yorkshire. Lamento Lísias, o regime aqui é de afastamento do mundo exterior. As ligações são às quartas feira, cinco minutos apenas. Agora preciso encaminhá-lo. Você terá aqui uma terapeuta de referência. Tratamos a ninfomania dela em 2005. É um de nossos maiores casos de sucesso terapêutico. São 14 anos de abstinência. O evite a primeira dose dela é o evite a primeira relação sexo-afetiva, explicou o Doutor. E prosseguiu: chega-se a um ponto em que a abstinência absoluta se torna imperiosa. Não há retorno. As dopaminas e serotoninas do viciado passam a ser ativadas apenas com a ingestão da droga ou com o comportamento compulsivo que caracteriza a adicção. É uma luta até que o cérebro torne a produzir naturalmente essas substâncias e que a pessoa volte a ter prazer nas atividades rotineiras, sono, e motivação por qualquer outra coisa. Ela encontrou novos prazeres na vida. Atualmente é paraquedista.


A palavra paraquedista deixou Lísias inquieto pela primeira vez. Os olhos abriram-se um pouco mais. Paraquedista lembrava o Capitão. O doutor notou imediatamente a associação de ideias. Ricardo! Esqueça a política. Não terá acesso a televisão ou rádio. Internet, nem pensar. Melhor seria eu lhe dar um cachimbo de crack, Ricardo, me perdoe a franqueza.


A história da abstinência absoluta de sexo da ninfomaníaca deixou Lísias desassossegado. Olhou cabisbaixo para o lado novamente e indagou, murmurando entre os dentes, como quem estivesse a esgotar o último joule de energia interior para falar: Vai valer para mim também? Valer você diz o quê, Ricardo? A abstinência absoluta de escrita… Doutor Laranjeira ergueu a cabeça e passou as duas mãos no queixo com a feição esterilizada de preocupação profissional. E prosseguiu dizendo: Isso é só o início do tratamento, Ricardo. Em regra, não uso a abordagem da redução de danos, mas diante da singularidade do seu caso, podemos chegar a isso. Mas preciso ver como você reage. Ao ouvir a expressão redução de danos, um leve brilho apareceu nos olhos de Lísias e seus lábios estenderam-se levemente rumo às vastas bochechas. Agora preciso encaminhá-lo à terapeuta. O nome dela é Virgínia. A prescrição de seus medicamentos já está com a farmácia e com a enfermaria. Fique tranquilo. Aproveite para conversar com as pessoas, para meditar. Digo meditar mesmo, como David Lynch. Mas seu PTI, ou Plano de Tratamento Individual será definido pela Virgínia e pela equipe multidisciplinar que conta com psicólogos, educadores físicos, e os conselheiros-terapeutas. Eles são as figuras-chave da programação que adotamos aqui. Em geral, eu só manipulo dopaminas, serotoninas, endorfinas, etc., mas nada como a experiência de vida que você pode absorver dos terapeutas. A força do exemplo tem um grande poder curativo. Você vai gostar da Virgínia.


Na porta do imenso consultório do Doutor Laranjeira aguardava uma moça com roupas de ginástica e óculos arredondados semelhantes ao que usava a personagem Chiquinha, do seriado Chaves.

Há duas formas de pensar, nos ensinou o nobel Daniel Kahneman: rápido e devagar, ou pensamos com o sistema 1, ou com o sistema 2. O primeiro é estruturado em livre associação de ideias, e corre espontaneamente com pouco dispêndio de energia nas sinapses cerebrais. O sistema 2 é o sistema do raciocínio, da concentração, da matemática e do estudo de línguas, exige esforço e, em plena atividade, faz com que os neurônios comam glicose como um alcoólatra bebe cerveja ou vodca. Ao fitar a moça recostada com os ombros num dos beirais da porta entreaberta, pernas cruzadas, um sorriso entre simpático e vaidoso, casaco de couro e calças rasgadas, o sistema 1 de Lísias disparou uma série de associação de ideias que o conduziram a uma breve crise de histeria: moça de óculos de Chiquinha, paraquedista, Academia Militar das Agulhas Negras, Brilhante Ulstra, Capitão, SBT, Danilo Gentile, Damares, Ana Carolina Campanholo, fascismo, fascismo, fascismo eterno! O último pensamento materializou-se verbalmente na forma de um grito lancinante: fascismo!


Foi necessária a intervenção da enfermagem. Uma nova dose de haldol com diazepam foi injetada em sua corrente sanguínea e ele foi repousar em estado de confortably numb — ou melhor dizendo, numa espécie de paz eufórica — dentro de uma das suítes do resort-clínica do Doutor Laranjeira. Era caro, mas além da ajuda da mãe, Lísias utilizava a sua vitalícia bolsa da CAPES de universitário cinquentão para custear o tratamento.

Virgínia não demonstrou preocupação. Aquilo era de seu dia a dia. Seu feijão com arroz. Despediu-se do Doutor Laranjeira prometendo dedicação intensa ao caso: Doutor, já tenho as ferramentas para o caso dele. Não se preocupe. Funciona perfeitamente com intelectuais. Tratei aqui professores, padres, teólogos, jornalistas, ideólogos, filósofos. Curei fixação em paralaxe cognitiva, mentalidade revolucionária, imaginação totalitária, patrimonialismo, psianálise, teologia da libertação, fascismo, perenialismo, escola austríaca, teoria crítica, paleoconsevativismo e neoconservativismo, comunitarismo, John Raws, veganismo, e até um monge ortodoxo com fixação pela contenda do filioque, tudo com minhas ferramentas. Acho que para ele vai funcionar também. Confio em você Virgínia, disse o Laranjeira apertando as mãos da terapeuta. Pode confiar Doutor, caso contrário, eu mesmo volto a trepar.


2.

Lísias despertou poucas horas depois, já no quarto, 9 da noite. Moveu a cabeça para o lado e notou que tinha um companheiro. Era um barbudo calado, de rosto enigmático, entre autoritário, cínico e impassível. Tapava a careca com um boné vermelho com os dizeres Make America Great Again. Estava sentado mexendo num relógio de pulso imenso, em formato de tanque de guerra de coleção de fascículos da Segunda Guerra Mundial, desses que só uns tipos estranhos compram nas bancas de jornais. Ao avistar o boné, Lísias virou a cabeça para o outro lado. Estava ali para abolir os pensamentos políticos. Era só fingir que aquele boné não existia. Tentar ser simpático, ter empatia mesmo por imbecis políticos: agir assim fora o conselho que seu psicoterapeuta-cineasta lhe dera. Lísias temia também cair no solipsismo depressivo dos absolutamente insulados em si mesmos. Destarte, resolveu puxar conversa com o companheiro, ser simpático. Como se chama, colega? Bin Laden, respondeu o rapaz alto com um sorriso desafiador. Apelido irônico, hein, provocou Lísias. E esse relógio, rapaz? É de nióbio, uma de nossas maiores riquezas nacionais que os globalistas querem nos tomar, disse o Bin Laden. Nióbio, globalistas… O sistema 1 de Lísias, inativado pela medicação voltou a funcionar no modo acelerado, acompanhando sincronicamente o aumento de seus batimentos cardíacos. Nióbio, Enéas, bomba atômica, globalistas, Olavo, Capitão! Lísias ergueu-se de supetão, foi direto ao posto da enfermaria, próximo ao quarto: Não posso dividir apartamento de hospital com um fascista. A enfermeira não entendeu o motivo de seu descontentamento. Senhor, não temos autorização para troca de quarto. Bin Laden ouviu que havia sido chamado de fascista e também saiu do quarto. Veio até Lísias e perguntou: o Sr. sabe o que é fascismo? Lísias manteve-se calado. Me responde, anão! Agora foi a enfermeira a levantar-se, preocupada. Jorge, respeite o paciente!, ordenou a mulher de branco, uma gordinha de cabelo curto e meia-idade. Jorge era o nome real de Bin Laden, e elevou o tom de voz: Eu é que não vou dormir com comunista! Comunista! Bin Laden começou a andar de um lado para o outro, nervoso. Lísias mantinha-se parado como estátua, cabeça erguida com algum esforço (pois ainda estava em estado de adinamia) conservando um ar de dignidade afetada expressa pelos lábios em bico. Bin Laden ficava cada vez mais nervoso, as raias vermelhas dos cantos dos olhos pareciam pulsar. A enfermeira pegou o telefone para chamar colegas homens, duas montanhas em formato de gente encarregados da solução de conflitos físicos. Claudete, a enfermeira, estava já discando para o andar de baixo quando se deu conta de que os dois já estavam trocando pontapés.


Foram apartados e sedados. Mais uma vez, Lísias teve de ser submetido a doses de haldol e diazepem. E dessa vez o médico de plantão decidiu que seria uma suficiente para que ele dormisse a noite inteira. Pouco após a briga, a mãe de Lísias foi comunicada, e após uma ligação para o psicólogo Ab´Saber que, por sua vez, ligou para o Laranjeira, conseguiram instalar o escritor num quarto individual.


3.


Fazia frio naquela clínica de Campinas. Era manhã de finais de maio quando Lísias despertou ainda com muito torpor e gemendo baixinho com dor nas pernas. Não despertou com a lembrança de Bin Laden, mas de uma palavra que ouvira no dia anterior, no salão-consultório do Doutor Laranjeira: ferramentas. Lísia conhecia bem o léxico peculiar dos psicólogos e terapeutas de saúde mental. Quando se referem a ferramentas, querem dizer técnicas de meditação e reflexão; referem-se à constatação, por exemplo, de que pensamento gera sentimento, que gera ação, e que, portanto, é preciso matar, já no ovo do pensamento, a serpente dos maus sentimentos. Ferramentas indicadas: desfocalização, desreflexão. Respirar fundo, contar até dez. Ferramentas também se referiam a dinâmicas terapêuticas como partilhas de sentimento em grupo ou a oração da serenidade dos alcoólicos anônimos. Lembrou-se de que antes de ir para a clínica do Laranjeira lia o livrinho que o filho de Renato Russo publicara com os diários escritos pelo pai em uma internação na clínica Vila Serena, Rio de Janeiro. Rememorava algumas passagens quando bateram na porta. Eram já 8 da manhã. Mancando, Lísias abriu e deu de cara com uma visita desagradável: a terapeuta Virgínia. Bom dia, Ricardo! Ah, bom dia, retribuiu Lísias, com um muxoxo, cabisbaixo. E a terapeuta: Trouxe as ferramentas. Como assim trouxe? Ricardo, as ferramentas com que vamos trabalhar sua reabilitação. O pessoal se reuniu hoje e definiu seu plano de tratamento individual. É? Sim. Ah, mas eu queria dormir mais um pouquinho, Ana Carolina. É Virgínia, meu nome, corrigiu a terapeuta. Então, Virgínia, será que dá para começar amanhã? Ainda estou sonolento, ontem não me contive e acabei brigando com um fascista, então queria tirar o dia para descansar, dormir mais, por favor. Hoje não dá ah, ah, ah, hoje não dá… Cantarolou a terapeuta uma conhecida canção da Legião Urbana, ironicamente. E prosseguiu: bom, Ricardo, quanto antes começar, antes vai ter sua alta, mas vou conversar com o grupo novamente, redefinir se podemos então adiar o início de suas atividades para amanhã. Faça esse favor An.., Virgínia, Virgínia, né?, indagou um Lísias um tanto aliviado. Virgínia foi entrando no quarto e dizendo: Tá bom, posso só entrar para conversar um pouquinho? Claro, claro. Sentaram-se no leito. Virgínia começou a falar de seu passado de vício em sexo, na degradação a que se submetera, 7 homens diferentes em uma só noite, em sua morte espiritual, e no encontro do caminho que trilhava até hoje, repleto de renúncias, mas marcado por uma maior estabilidade emocional, sem grandes explosões de euforia, mas também sem os vales de lágrimas da depressão pós-esbórnia. Lísias ouvia calado e de cabeça baixa, com a mão tapando a boca, ainda grogue de medicação. Foi quando o homem em trajes de operário entrou no quarto trazendo um enorme saco de fitas brancas de plástico grosso entrelaçadas. Bom dia, Virgínia! Bom dia, Maurício! Deixa eu te apresentar, Ricardo, esse é o Maurício. Bom, seu Ricardo? Tudo bom Maurício? O Maurício é o faz-tudo aqui. Pedreiro, eletricista, cuida da horta do jardim… Lísias, neste momento, pensou na ralé brasileira e na elite do atraso da indústria da psiquiatria. Por um momento sentiu tristeza porque pessoas que deveriam estar cuidando do bem-estar físico, mental e espiritual das pessoas, de uma forma comunitária, estavam se tornando capitalistas da dor alheia, e ele, ele ajudava a manter o sistema. Estes pensamentos o deixavam ainda mais deprimido. Pode colocar no chão, Virgínia? Pode, Maurício. O homem então depositou o saco no piso de porcelanato. O barulho de metal contra metal, e de metal contra porcelanato, fez Lísias levantar a cabeça entre curioso e surpreso.


Virgínia se levantou. Vamos lá, Ricardo, quero te mostrar uma coisa. E tirando alguns objetos do saco disse ao escritor: eis as ferramentas! Primeiro, enxada para a horta; martelo, pregos e chave turquesa para consertar a cerca; e uma machadinha para rachar a lenha da fogueira, é mês de festa junina, Ricardo! Nesse momento, Lísias riu pela primeira vez em 48 horas. Laborterapia, meu querido! Existe melhor remédio para intelectuais? Wittgenstein praticava muito. De vez em quando largava tudo em Oxford e se mandava para um fim de mundo qualquer para se empregar num hotel como lavador de pratos. O riso de Lísias foi diminuindo, fez-se um sorriso em seu rosto que logo se apagou e, já, já, estava melancólico de novo. Às ferramentas, Ricardo!, terminou Virgínia, calorosa.


4.

Uma semana depois da visita de Virgínia a Lísias, como de hábito, o Doutor Laranjeira chegou à clínica por vota de meia-noite, quando todos os pacientes já dormiam. Não passava pelos prédios da internação, pelas dependências administrativas, ou pela enfermaria. Ia direto aos fundos da clínica, onde havia uma horta, um campo de futebol, um jardim, um pomar, e um estábulo. Era ao estábulo que queria chegar. Lá estava seu manga-larga a aguardá-lo. Skinner era o nome do majestoso animal. Ninguém sabe, mas o Doutor Ronaldo Laranjeira, emérito psiquiatra brasileiro, currículo lattes http://lattes.cnpq.br/4152477223577402, é amante de cavalgadas noturnas nas cercanias de seu resorte-clínica. Vinha com botas tão bem lustradas quanto a basta e lisa crina negra de seu cavalo, um casacão com lã interna cinza furado por um broche de coleção (sim, outra curiosidade aqui do Doutor Laranjeira: ele é colecionador de broches, e o que usava, era o broche de formatura original de ninguém menos do que o psiquiatra austríaco Alfred Adler, comprado em um leilão em Zurique, por indicação de um especialista em colecionismo acometido de transtorno de ansiedade grave que é, não por acaso, era seu paciente).


O sentimento experimentado pelo Doutor Laranjeira ao se deparar com a cena que se descortinava à sua frente quando abriu a porteira do estábulo não encontra vocábulo preciso que o exprima. Podemos revirar o Caudas Aulete ou o melhor manual de psiquiatria e não o encontraremos. Vamos apelar para o clichê então: choque! Caído em meio às fezes frescas dos animais estava Virgínia com uma machadinha enterrada no crânio.


5.

A Casa de Custódia de Taubaté, um manicômio judiciário, tem mais de 100 anos, e é célebre em todo o Brasil, não só por sua longevidade, mas por ter abrigado criminosos doentes mentais de terrível e nacional má fama. Não precisamos citar Chico Picadinho e o Bandido da Luz Vermelha.


Dentro dela, em um dos quartos-cela, um homem negro, de cabeça raspada, cavanhaque e bigodes, recém abrigado ali após ter sido considerado inimputável num caso internacionalmente estrepitoso de tentativa de homicídio já fora avisado da chegada de seu companheiro de quarto.


Ele estava de costas para a porta e virou-se sem muita brusquidão quando ela foi aberta e dois enfermeiros entraram com um jovem de baixa estatura, boné de vovô comunista e óculos arredondados.


- Esse vai ser seu amiguinho, Adélio, comentou o enfermeiro, apresentando o novo interno.


-Seja bem-vindo parceiro.


Lísias sentou-se em sua cama de costas para Adélio, empertigado, circunspecto, olhos parados e sério. Foi Adélio quem puxou assunto:


- Foi tentativa de homicídio também?


-Não. Perseguição política. Fascistas.


-Me disseram que seu nome é Ricardo…, continuou Adélio. Ricardo Lísio.


Lísias voltou a cabeça para Adélio sem perder a feição dura como ferro, não disfarçando sua revolta com a prisão, e o corrigiu:


-Deve ter havido algum equívoco, companheiro. Meu nome é Antonio Gramisci.




P.S. Este é um conto inédito e não faz parte do livro Neuroquímica e Fantasmagoria.



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