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  • Foto do escritorVinícius de Oliveira.

Leitura Crítica por Rodrigo Gurgel.

Atualizado: 16 de fev.


Um dos primeiros leitores dos originais da obra foi o crítico literário Rodrigo Gurgel. Após uma análise profissional da coletânea de contos, recebi um relatório de leitura crítica que reproduzo abaixo:



O original é uma coletânea de nove contos voltados, segundo o Prefácio do autor, ao "universo de implicações psicológicas, sociais, políticas, antropológicas, religiosas e mesmo metafísicas que rondam o consumo das drogas." As histórias transcorrem num espaço geográfico delimitado: o Estado de Minas Gerais, capital e interior.


Em "Os escoteiros", o narrador inicia seu texto com um preâmbulo que não só justifica o desencadeamento de suas lembranças, mas anuncia a habilidade do autor para alinhavar histórias: veja-se, por exemplo, como, partindo do defeito no automóvel que conduz a família pela BR-116, ele não só extrair o elemento desencadeador das suas memórias mas, antes, consegue refletir a respeito da relação que mantém com sua esposa, Camila. Essas mesmas reflexões servem para que se autodefina e, também, apresenta de forma bem-humorada, uma das típicas crises que, diariamente, pelos motivos mais diversos, afetam os casamentos.


Dessa forma, quando, no final da página 8, começa a história central, o leitor já se encontra sob o domínio de uma voz narrativa dotada de inegável naturalidade. A partir desse ponto, seremos levados a uma sucessão de acontecimentos alguns dramáticos, envolvendo pré-adolescentes e adolescentes sob o comando do Tenente Bressane. Dentre eles, o personagem central, Zara, filho de uma católica devota e uma alcoólatra professor de história, do qual o menino presenciará a morte prematura.


Zara é um personagem complexo, que pode chorar ao ouvir a "Ave Maria" de Bach, mas também se entrega a práticas violentas e perniciosas.


Observa-se, entretanto, que a narrativa traz sub-narrativas, como a história de Júlio, primo do narrador, influenciado por uma suposta aparição da Virgem Maria em certa cidadesinha do interior. Zara se aproveitará da inocência de Júlio para ecarnecer dele e aplicar um pequeno golpe, apoderando-se do dinheiro arrecadado pelo menino uma tentativa de limpar sua alma enquanto aguarda o Apocalipse iminente. Há também outra interessante história paralela, dedicada ao coronel Mercadante de Barros.


Em meio às aventuras dos escoteiros, ocorrem casos de homossexualismo e até mesmo uma tentativa de justiçamento, comandada por Zara contra Acácio, um dos membros do grupo. É nesse ponto que a personagem agressiva do protagonista contribui para confirmar ao narrador, sua relação com as drogas.


O narrador segue Zara para além do período em que frequentaram juntos o grupo de escoteiros, mostrando seu nefasto compromisso com o tráfico de drogas.


Essa primeira história empolga o leitor a prosseguir - o estilo é ágil, há curiosas variedades de personagens todos bem construídos, com características pessoais marcantes. Trata-se de bom exemplo de narrativa em primeira pessoa, na qual o narrador não se restringe a falar de si mesmo, mas apresenta a complexidade de seu microcosmo.


Do ponto de vista gramatical, o autor tem domínio da língua e das possibilidades expressivas - o que as narrativas seguintes confirmam -, mas apresenta alguns raros problemas de virgulação, facilmente resolvíveis por um revisor atento.


A segunda narrativa, "O Advogado dos Bola da Vez e Sua Missão Civilizatória Num Morro Carioca", as qualidades da história anterior se repetem. Retorna o narrador que apresenta suas memórias, mas num tom irônico. Passo a passo, a cada novo narrador, o efetivo domínio do autor em relação às técnicas narrativas se confirma. Nesse caso, trata-se de um advogado que fala a respeito de seu cliente, o taxista Sérgio, cocainômano que conhece numa clínica de dependentes químicos em São João del Rey.


Veja-se, na página 43, como a história é bem construída: a relação entre Sérgio e Negueba - e deles com os chefes do tráfico -, apesar de emaranhada é perfeitamente compreensível em todos os seus contratempos. Há, portanto, verossimilhança.


Duas observações entretanto são necessárias: a) os "diários de sentimento" podem ser mais bem explicados, pois a expressão é desconhecida para quem não pertence ao universo das clínicas de recuperação; b) da mesma forma, há outros termos desconhecidos, como "efeito Brizola", ou referências que não são totalmente compreensíveis: na página 45, não sabemos quem é o "Sargento Willard."


Em "Neuroquímica e Fantasmagoria", a história seguinte, encontramos nova voz narrativa, desta vez uma mulher, médica neurologista formada pela Universidade Federal de Minas Gerais. Todo o seu interesse por "drogas psicoativas" é perfeitamente construído - e ela apresenta características peculiares: sua ironia, por exemplo, é mais culta que a dos dos outros narradores, tem uma sutileza peculiar, como demonstra na página 52, ao dizer que seu marido, Edu, "sempre teve esse romantismo do seminarista frustrado: para ele, até apertar uma baseado era coisa moralmente séria."


Reencontramos também a mesma naturalidade na forma de contar - e ao introduzir novos personagens secundários cuja relação com o núcleo da história vai se solidificando gradualmente: é o caso de Elvis, que surge, desaparece e depois retorna na página 59.


Antes, na página 56, outro ponto que merece ser salientado é o recurso da quebra de tempo: a narrativa volta ao passado após longo trecho discorrendo a respeito do passado, o que amplia a verossimilhança da história e acrescente complexidade à narradora.


O autor, contudo, deve tomar cuidado com o excesso de repetições que ocorre na página 51, a partir de "Eu já sabia que Edu...": "já" é excessivamente repetido o que diminui a qualidade do texto.


Passamos para "Autonomia da Vontade" - e o leitor se depara com nova voz narrativa, agora em terceira pessoa. Logo no primeiro parágrafo, entretanto o autor deve tomar cuidado com a repetição desnecessária de "prosperidade".


O final da história é abrupto e impactante. A narrativa também empolga porque seu ritmo e seu tamanho são completamente diferentes das anteriores. A concisão serve vem ao enredo. Tudo é construído de forma convincente, mas um ponto precisa ser repensado: é estranho que a filha (a narradora do texto anterior) não aprofunde seus comentários a respeito do pai naquela narrativa. Esse cuidado ampliaria não só a inter-relação, mas também a verossimilhança do drama paterno.


Em "O Inimigo Mora nos Detalhes ou A Droga da Burocracia", os diálogos são ótimos, a narrativa é carregada de um humor nonsense que ainda não havia surgido no original. A trama mostra as incoerências do serviço público, com o chefe paranoico, pronto a corrigir detalhes sem nenhuma importância, mas disposto a faltar ao trabalho. Apenas uma observação se faz necessária: o que estaria fazendo na Cracolândia, em São Paulo, um chefe de cartório do interior de Minas Gerais? Neste caso, os nexos causais precisam ser construídos de maneira mais convincente.


"Um Picaresco Drogadicto Carioca" é a narrativa mais fraca do conjunto. Não há emoção, o final decepciona, por absoluta ausência de clímax. A história de Leonardo não tem nenhuma aspecto realmente singular que a ressalta das outras narrativas - e as características que o personagem apresenta foram incorporadas pelos protagonisitas anteriores. O texto, assim, deveria ser reelaborado.


"Um Luau no Hospício" o "Partilha de Narcóticos Anônimos" são bem escritos, mas sofrem do mesmo problema encontrado em "Um Picaresco Drogadicto Carioca": são narrativas mais próximas da crônica. Elogiáveis exercícios de estilo, sim, mas faltam momentos relevantes de alguma fora dramáticos, que apresentem uma ou várias inflexões na vida dos personagens. Saliente-se, contudo, que "Um Luau no Hospício" apresenta de forma perfeita as variações de humor de uma personalidade destruída pelo consumo de drogas - e confirma a segurança do autor para construir diálogos. Essas qualidades, entretanto, só me fazem desejar que as duas histórias sejam aprimoradas. O autor, aliás, já provou que tem capacidade muito superior ao que elas apresentam.


A história que fecha o original, "Último Diário de Recaída", retoma a qualidade das narrativas iniciais, utilizando tom completamente diverso, inesperado: o narrador tem uma voz intimista, introspectiva. Voltamos ao narrador em primeira pessoa, mas o humor e a acidez são substituídos por uma melancolia que nos contagia. O narrador vasculha seu próprio eu, constrói diversas ilações filosóficas, desnuda seu interior dividido entre Deus e o Demônio, fazendo-nos recordar o célebre poema de José Régio, "Cântico Negro." A narrativa termina de forma parcialmente aberta, num misto de pessimismo, aceitação passiva e contrariedades, mas também de insistência na busca de respostas. O leitor recorda as narrativas anteriores: em meio a tantos dramas apresentados, é como se o autor encerrasse o original dizendo que os erros humanos ocorrem, apenas e exclusivamente, quando há ausência de amor.


Rodrigo Gurgel


São Paulo, 05 de junho de 2018.











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